Matemática é política de Chiara Valerio. Belo Horizonte: Âyiné, 30 de agosto de 2021. 130 p
DOI:
https://doi.org/10.5585/cpg.v21n2.22733Palavras-chave:
matemática, politica, democraciaResumo
O livro A Matemática é Política, de autoria de Chiara Valério, e publicado pela editora Ayiene em 30 de agosto de 2021 aborda questões altamente relevantes sobre a matemática em diálogo com a contemporaneidade. A autora é Doutora em Matemática pela Universidade Federico II de Nápoles, e é também editora da revista Nuovi Argomenti. Na editora Nottetempo, dirigiu a série Narrativa.it, dedicada a novos escritores de ficção italiana. Foi diretora cultural da feira do livro milanesa Tempo di libri, e, em 2018, foi editora-chefe do setor de ficção italiana da editora Marsilio de Veneza. Seu percurso intelectual, portanto, delineia pontes entre a matemática e as humanidades.
Neste livro, é explicado como a matemática pode ser usada de forma a entender política e democracia em possíveis diálogos. Fala-nos de sua caminhada com a matemática fazendo ligações também com filosofia, educação, cinema e gramática, levando-nos a perceber o quão profundas são as raízes de todos esses diálogos vinculados à democracia. A pesquisadora também nos leva de volta no tempo, para reconstruir a história da matemática e, em particular, da geometria. Discorre sobre as descobertas de Euclides, em particular a descoberta do quinto postulado, enunciado por volta de 300 a.C., e como esta se tornou uma questão fundamental nos séculos seguintes. Lembra-nos, ainda, de que, apesar de lidar com a exatidão, a matemática não é uma verdade absoluta, mas que sempre depende do ponto de vista em referência. A matemática se baseia em regras claras, das quais decorrem outras regras que podem servir de modelos mais precisos de organização social.
Segundo a autora, assim como ocorre com o acesso ao conhecimento (e também à matemática), a democracia não se dá como uma escolha definitiva e facilmente alcançável, mas como uma construção constante a ser exercida, renovada e verificada, semelhante a uma teoria científica. A manutenção da democracia se faz por meio do exercício do direito e do respeito aos deveres, muito semelhante ao exercício de aprender a se apropriar do universo da matemática para aplicá-lo no dia a dia.
Dessa forma, a autora traça um paralelo entre matemática e democracia. Para ela, a matemática é dedutível, tomando como exemplo, a geometria euclidiana, em seu sistema fechado, dedutível a partir de certas verdades anunciadas. A primeira metade do livro se volta, em determinados momentos, à questão da linguagem matemática e, resumidamente, ilustra porque é importante estudá-la e entendê-la. A segunda parte enfatiza questões sociais e políticas vinculadas à matemática.
A abordagem sobre dois conceitos aparentemente distantes – matemática e política – é profunda. E a escrita ensaística proporciona uma leitura leve sem abrir mão do rigor da análise das questões ligadas ao universo da matemática. O bom humor com que são tratadas certas questões tempera as reflexões. Na verdade, o paralelismo entre matemática e democracia abre amplos espaços de reflexão sobre o relativismo de opiniões e aponta para os cuidados exigidos em nas análises. A escritora conduz a escrita por meio de uma argumentação criativa, mas consistente, aliando temas que, em um primeiro momento, parecem distantes do universo da matemática.
A autora também aborda a relevante questão de a matemática estar ligada à atuação do professor que a ensina, assim como a vivência da democracia. Muitos processos democráticos não se mostram compreensíveis dependendo do ponto de vista e da ação dos envolvidos e ela aponta que são mantidas as proporções, num processo semelhante àquele de resolução de derivadas. Assim, há um raciocínio lógico envolvido nessas perspectivas, cabendo ao professor orientar o estudante no sentido de alcançar as nuanças dos raciocínios matemático e democrático e das possibilidades de diálogos entre eles.
No processo democrático do ensino-aprendizagem existe uma sequência lógica de demonstração em cada exercício proposto. A autora dá ênfase a um diálogo com a política, mostrando como esta pode, em última análise, ser lida de forma aproximada às categorias da matemática. Narra algumas experiências pessoais, entre elas a de como o estudo dessa perspectiva a ajudou a entender que não existe apenas um ponto de vista possível, o que a levou com o tempo a aceitar o relativismo, ainda que isto não signifique aceitar todos os pontos de vista como válidos. Ela propõe, ainda, uma interpretação da matemática acessada no seu dinamismo, que não deve ficar presa a um exercício racional de cálculo, numérico e formal; uma matemática viva, porém incorpórea, e muito mais educativa do que pensamos, tendo em vista ser capaz de nos fazer entender muito sobre nós mesmos e nossas inter-relações.
Uma matemática ética, portanto, oferece-se como lente válida para ler o presente, sobretudo nas suas lacunas, mas também na sua essência. Importante lembrar que o princípio da autoridade não funciona na matemática e que, acima de tudo, um matemático nunca responde “a quem, mas sempre a quê”. De fato, não responde nem mesmo às coisas, mas às relações entre as coisas. A matemática também é um processo contínuo, que evolui e é interpretado. Assim como deveria ser a democracia, diferentemente da ditadura, que pode mudar de cor, mas sempre tende a funcionar de uma mesma maneira.
É preciso tempo para entender a matemática. Ser capaz de explicá-la e ensiná-la, então, leva ainda mais tempo. O conhecimento é um processo que leva mais à dúvida do que à certeza. A matemática não é a ciência dos objetos, mas da relação entre os objetos, assim como a gramática é o estudo das relações entre as palavras. Dessa forma, a autora faz uma série de críticas sobre o ensino-aprendizagem da matemática. E, embora defenda a disciplina, chega, em alguns momentos, a colocar em xeque, se o que dizem sobre ela é mesmo verdade. Quando a matemática é estudada sem criatividade, aplica-se o método dedutivo e isso, segundo a autora, constitui um fardo pesado sobre os alunos. E é exatamente a esse tipo de contexto que ela se refere quando fala que a matemática é ensinada no vazio. Com muita propriedade, chega a questionar se o que se ensina em matemática é mesmo, por vezes, a verdade e se as letras usadas como variáveis, sempre foram, de fato, x e y.
A autora nos lembra que todos estão sujeitos ao erro, referindo-se a Albert Einstein, autor da Teoria da Relatividade, considerado um dos maiores gênios da humanidade, lembra que ele próprio, quando estabeleceu a relação entre a massa e a energia e formulou sua famosa equação (E = mc²), não acreditava na existência do buraco negro nem que o universo estava sempre se expandindo. Algum tempo depois, no entanto, a acabou por reavaliar tais convicções. Reconhecendo suas limitações, colocou-se com humildade diante de seu anterior negacionismo. Nesse sentido, a autora lembra que quando não se assumem determinados erros, podem surgir diversas consequências, inclusive injustiças sociais.
Entre as passagens interessantes do livro, há a afirmação de que o estudo da matemática pode ser agradável, comparando-o, a um passeio na natureza para um confronto com o tempo e o silêncio. Em suas próprias palavras:
Não existem Filosofias e Religiões que sejam igualmente eficazes, não existem passeios na natureza que resistam à comparação com o tempo e o silêncio que a resolução de um exercício de Matemática nos proporciona. (p.31).
Apesar de desafiadora, a matemática pode ser aprendida com esforço e vontade bem direcionados, o que não significa um mero aprendizado mnemônico ou acrítico, mas constante e comprometido. O aprendizado deve ser conduzido sempre em busca de novas conexões, passando por diferentes problemas, fazendo-se constantes perguntas para entender, enfim, a frequência do assunto para criar a experiência necessária à apreensão do conteúdo, sem nunca menosprezar aqueles que, aparentemente, têm mais dificuldade em entender os processos matemáticos. Este livro pode oferecer a um leitor que ainda não tenha refletido, por exemplo, sobre tais questões, uma série de possibilidades de conexões lógicas vinculadas ao ensino e aprendizagem da matemática.
A autora apresenta uma possibilidade de contextos democráticos ávidos por princípios matemáticos. Usando a própria matemática, a literatura e a filosofia como elementos de declinação, realiza um belo e comovente manifesto político. Tratando sobre sua atuação como editora e escritora mais recentemente, confessa haver deixado de lado um pouco a lida direta com cálculos, mas sabe que nunca irá “se livrar” deles, reservados que se encontram em algum canto de seu cérebro, esperando apenas o momento certo para serem reativados. Nesse sentido, compara-se aos atletas de alto desempenho que, mesmo tendo parado de treinar, nunca se esquecem dos princípios fundamentais relacionados ao treinamento. O exercício da atividade matemática exige tempo e paciência, perseverança e dedicação.
A manutenção da democracia, vista por seus diálogos possíveis com a matemática, e outras áreas do conhecimento, dá-se pelo exercício dos direitos e pelo respeito aos deveres. A democracia é matemática, baseada em um sistema compartilhado de regras continuamente negociáveis e verificáveis. A democracia, assim como as linguagens, e entre elas a matemática, não é algo natural, não é uma flor que naturalmente desabrocha. Trata-se de uma construção cultural e que, portanto, deve ser constantemente retomada e rediscutida.
Enfim, o livro aponta, com profunda sagacidade, paralelismos possíveis entre modelos matemáticos e o que chamamos democracia e, em certa medida, também entre ser matemático e ser cidadão. Mais que um ensaio, trata-se de uma intuição desenvolvida como uma bela metáfora apresentada na forma de um convite sincero para o exame dos princípios em que se assentam a democracia, assim como se faz com os postulados, sem os quais a matemática não existiria.
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