Maurício Pedro da Silva, Política das diferenças no ensino superior: questões étnico-raciais na educação universitária brasileira
DOI:
https://doi.org/10.5585/eccos.n54.16589Resumo
É próprio da indagação filosófica sempre se envolver com o desafio de construir um sentido para todas as coisas, mas dedica-se com destacada preocupação a esclarecer o sentido da própria existência da espécie humana. Daí o permanente esforço para se dar conta da razão de ser dessa espécie na superfície do planeta, particularmente levando em conta as características que a diferenciam das demais espécies vivas. Nessa diferenciação se ressalta sobretudo a própria necessidade buscar o sentido das coisas e de si mesma. Mitos, religiões, metafísicas, arte e todas as modalidades de expressão cultural se desdobraram, ao longo dos milênios, em explicar a razão de ser de nossa existência histórica. Até hoje nenhuma explicação conseguiu elucidar este problema, o que leva atualmente algumas dessas modalidades a defenderem que não existe nenhum sentido a atribuir-lhe. E não faltam mesmo motivos para esse posicionamento negativo à vista de tantos eventos que acometem a humanidade e que raiam ao absurdo, à contradição e ao desatino. Sem dúvida, parece plenamente justificável concluir que não há mesmo um sentido previamente estabelecido, inerente à própria condição natural da espécie, sentido que pudesse ser encontrado, descoberto e ao qual devêssemos nos adequar de partida, nenhum design inteligente a enunciar finalidades e caminhos. Ao contrário do que pretendem as miragens míticas, as esperanças teológicas, as especulações metafísicas e os determinismos científicos, nenhum sentido prévio está dado. Mas, se não está dado, ele precisa ser construído. Isso quer dizer que a espécie só poderá sobreviver como tal se ela se der uma razão de ser! E isso ela pode fazer por dispor de ferramenta apropriada, qual seja, o conhecimento, competência que lhe advém da capacidade específica de exercício da subjetividade.
Assim, para poder sobreviver, a espécie humana precisa se dar conta, inicialmente, de que constitui uma espécie, o que quer dizer que ela se constitui como uma unidade. Que ela é unida por uma solidariedade objetiva de destino. É como se estivéssemos todos numa verdadeira arca de Noé que, se afundar, levará todos para o nada, deixando a dimensão de ser para aquela do não-ser. E é essa unidade de destino, esta solidariedade objetiva que torna necessário reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos. Esta é a condição fundamental e imprescindível! E a não existência real dessa igualdade é o grande obstáculo que tem travado a construção do sentido da história humana. O que ocorre é que o pensamento e a prática dos homens não têm conseguido articular as diferenças ônticas numa igualdade ontológica. As diferenças são tratadas e manejadas como se fossem desigualdades.
Todo este discurso preliminar tem a finalidade de situar a proposta de debate e reflexão trazida pelo livro de Maurício Silva. Estamos diante de um significativo esforço de análise e reflexão do autor sobre a questão étnico-racial, à luz dos pressupostos acima sintetizados. É que quando se trata de abordar as diferenças, aquelas relacionadas à condição étnico-racial, em nosso contexto histórico-social, ganham impressionante destaque. Sem dúvida, a desigualdade entre os seres humanos brasileiros não tem a diferença étnica como sua única causa. A perversa distribuição das riquezas materiais e dos bens culturais, a ausência de condições de acesso aos recursos sociais, são outros tantos fatores a causar e a reforçar a grande desigualdade que marca a nossa existência histórica. No entanto, é certo que a desigualdade decorrente da condição étnica é um dos mais marcantes fatores que determinam e delineiam essa situação. E assume particular gravidade no caso dos sujeitos de origem africana, ao lado dos sujeitos de procedência indígena.
O modo brutal com que os africanos foram inseridos no espaço geossocial do Brasil, a cruel escravidão a que foram submetidos uma vez aqui chegados, por mais de 300 anos, toda a representação no imaginário da população de origem europeia, levaram à constituição de uma imagem do negro como um ser que, por sua diferença do branco, devia ser reduzido a uma condição ontológica inferior, mais próxima àquela dos animais do que dos humanos. Como ser inferior desigual não era considerado sujeito dos direitos já alcançados pelos outros integrantes da sociedade.
A obra de Maurício Silva, que ora apresento aos leitores, em seus diversos capítulos, nos traz consistente, bem informada e crítica exposição dessa realidade da população negra no Brasil, representada pelo seu segmento jovem que luta para vencer a barreira de acesso ao e da permanência no ensino superior, na Universidade. A educação universitária é um lugar exemplar para se visualizar e medir até que ponto a sociedade brasileira está conseguindo superar os preconceitos, vencer as discriminações e assumir a plena igualdade entre os seus integrantes.
Maurício Silva é doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Uninove. Ao lado de seus estudos no campo da literatura e da linguagem, dedica-se à pesquisa das políticas do ensino superior brasileiro, dedicando-se particularmente à temática da inclusão étnico-racial nesse nível de ensino, linha investigativa da qual o presente livro apresenta alguns resultados. Trata-se de um estudioso, altamente especializado no campo das Letras, que não se deixou inebriar pelo mavioso universo estético da Literatura e das Artes; ao contrário, mostra que elas são outras tantas modalidades de exercício da subjetividade, sensíveis às dores da condição histórica do existir humano. Daí sua incursão, marcada pela sensibilidade, dedicação, competente e crítica, à desigualdade que tanto atinge a população afro-brasileira.
O livro é estruturado em dois grandes momentos: numa primeira parte, de uma perspectiva teórica, trata dos desdobramentos da Lei 10639/03, para o ensino superior, tendo em vista que a preparação para os professores do ensino básico se dá no âmbito da sua formação universitária. Trata-se de emblemática lei que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileiras no ensino básico. Lei que, no entanto, ainda enfrenta muito descaso, quando não resistência, por parte do sistema escolar e da própria sociedade. Aí também abre espaço para a discussão da questão da política das ações afirmativas, com destaque para aquela das cotas raciais; já na segunda parte, as mesmas questões são retomadas mas a partir da análise de dois casos concretos distintos, abordando as experiências de uma universidade pública e de uma universidade particular, registrando, analisando e avaliando os projetos por elas assumidos e implementados, com vistas à inclusão e ao acolhimento de estudantes afrodescendentes.
Tratando, seja da recepção da Lei 10639/03, que determina a inclusão do estudo da cultura afro-brasileira no currículo do ensino básico, seja das políticas de ações afirmativas, tais como aquela das cotas para o acesso de jovens negros na Universidade, para além de uma análise técnica das questões legais e gestionárias, está sempre no horizonte argumentativo do autor, a questão de fundo, o tratamento desigual que é efetivamente dado à população afrodescendente. Assim, não perde de vista, em sua análise e reflexão, os artifícios disfarçados e resistentes de esvaziamento dos avanços formalmente reconhecidos, não só pela Constituição Brasileira, mas também por uma série de determinações legais já aprovadas, mas que continuam encontrando percalços decorrentes do histórico preconceito que ainda persiste na sociedade nacional e de impedimentos outros de natureza legal. O que faz com que os avanços conseguidos e expressos numa já consolidada legislação específica, tenham resultados abaixo do esperado e do necessário, camuflados sob a falsa representação da democracia racial brasileira.
Para além do registro do efetivo funcionamento do sistema educacional no país, na lide com a questão da desigualdade étnico-racial, o livro, além das ricas informações objetivas sobre o que vem ocorrendo em nossas universidades, nos traz preciosos subsídios ao destacar a necessidade e a relevância da intervenção docente pelo seu potencial de conscientização e reconhecimento das artimanhas ideológicas que comprometem a efetividade das determinações legais no que diz respeito à instauração de uma efetiva relação de igualdade entre as pessoas no tecido social, independentemente de suas características diferenciadoras. Ao longo de sua bem cuidada e rigorosa argumentação, fica sempre presente o compromisso do autor com o entendimento que tem da missão educativa: a luta incondicional pela superação do racismo e da discriminação racial, ideal para o qual a efetiva implementação de todos os dispositivos da Lei 10639/03 é uma fecunda mediação.
Por tudo isso, a séria e oportuna mensagem deste livro dirige-se, com idêntica relevância, a três públicos: aos docentes universitários que atuam na formação dos professores do ensino básico, nos cursos de Pedagogia e de Licenciaturas; aos professores que atuam no ensino básico, lugar prioritário para a sensibilização à condição de nossa identidade afrobrasileira e ainda àqueles cidadãos compromissados com a construção de uma sociedade mais humanizada, mais justa e equitativa, na qual as diferenças não sejam tratadas como desigualdades.
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