Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução, de Vera Iaconelli, Rio de Janeiro: Zahar, 2023, 253 p.

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DOI:

https://doi.org/10.5585/cpg.v23n2.27547

Palavras-chave:

manifesto antimaternalista

Resumo

A psicanalista e doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Vera Iaconelli, lançou, em 2023, pela Editora Zahar, o livro Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução, o qual apresenta uma análise das questões contemporâneas relacionadas ao discurso maternalista, que atribui ao gênero feminino a responsabilidade exclusiva pela economia dos cuidados, questão essa, antes de tudo social, além de refletir também sobre o papel da Psicanálise na construção dessa visão social.

Na obra, organizada em quatro capítulos: “Maternalismo”, “Reprodução dos Corpos”, “Reprodução de Sujeitos” e “Conclusões”, a autora discorre sobre a responsabilidade do cuidado com as próximas gerações, discute as políticas públicas de reprodução, argumentando favoravelmente a uma diversificação de escolhas reprodutivas e de cuidados e aborda as normas culturais e ideológicas dos discursos dominantes e sua reprodução pelas teorias psicanalíticas.

No capítulo “Maternalismo”, Iaconelli faz uma retomada histórica do período em que as crianças eram entregues a cuidadores fora do círculo familiar e dos problemas sociais oriundos dessas práticas, o que levou a sociedade a buscar um novo formato de criação, culminando na significação de que as mulheres deveriam ser as responsáveis pelos cuidados com a prole, a partir da percepção de que, para os Estados, a solução economicamente viável era deixar o problema social ser resolvido no âmbito familiar. Tanto a religião quanto a ciência passaram então a apresentar teorias de defesa do chamado instinto materno. Iaconelli destaca os escritos do filósofo Jean-Jacques Rousseau como um dos principais disseminadores do que será conceituado como maternalismo.

Ao longo do texto, a autora nos informa de que o modelo de mãe defendido pela sociedade é o da mulher cisgênero, heterossexual, com idades entre 25 e 35 anos, branca e casada, sendo relegadas a segundo plano todas as demais maternidades possíveis. Ao abordar as contribuições da psicanálise na imposição do maternalismo às mulheres, a autora destaca as teorias de Sigmund Freud, Melaine Klein e Donald Winniccot. Sem deixar de considerá-las fruto de um momento histórico, Iaconelli faz importantes indagações a respeito dessas teorias, argumentado que elas não se sustentam fora de seu contexto. De modo cuidadoso, a psicanalista utiliza as ideias principais dos autores citados para demonstrar que a ampliação de suas teorias na sociedade atual comportaria outras possibilidades de análise, como o conceito winnicottiano de mãe suficientemente boa, que sem perder suas contribuições principais, pode ser ampliado para o papel do cuidador, visto que todo ser humano que um dia foi bebê teria as condições primárias para ser um cuidador suficientemente bom.

Iaconelli busca separar a experiência de gestar e parir das funções necessárias para o cuidado de um bebê:

Assim, se a genitoridade diz respeito ao que se passa para que um novo organismo seja produzido, a perinatalidade diz respeito à parte de quem gesta/pare e sua relação com esse evento, enquanto a parentalidade diz respeito aos discursos sobre o cuidado com as próximas gerações e às condições oferecidas para realizá-lo. Refere-se também a assumir-se pai ou mãe e às funções necessárias, em cada época, para que se constitua a subjetividade no filhote humano. (Iaconelli, 2023, p. 109-110, grifos nossos)

 

Ao apresentar a separação dos conceitos de genitoridade e de parentalidade, a autora amplia a forma de compreendermos os papéis simbólicos do cuidar. De tal modo que fecundar um óvulo não transformaria um homem em pai, assim como gestar e parir não tornaria a mulher mãe, considerando inclusive a possibilidade de as pessoas não binárias e homens trans também gestarem.

No capítulo “Reprodução de corpos”, o conceito de perinatalidade está relacionado à subjetividade de quem o experiencia, tendo como epicentro o parto/nascimento, mas também incluindo as etapas antecedentes e as que o ultrapassam. A fisiologia do parto e suas interações psíquicas são abordadas pela autora, a partir da análise do que torna o bebê um ser social, no sentido de refletir que a aceitação simbólica do cuidador transformará o nascituro em bebê.

A autora volta seu olhar para a pessoa que gesta e pare, considerando corpos nascidos com útero, mas que não se identificam como mulher e atenta para as temáticas da violência obstétrica e de todas as adaptações de autoimagem que a(o) parturiente enfrenta em um curto período. A psicanalista procura abordar as problemáticas da reprodução de corpos de modo atual e com reflexões que podem causar desconforto aos mais conservadores, entretanto não deixa de discorrer sobre temas como gestação infantil, direito ao aborto e diferenças enfrentadas na perinatalidade, observando as circunstâncias de cor e condição social da pessoa que gesta.

A “Reprodução de Sujeitos”, no terceiro capítulo, é abordada pela autora em seus aspectos sociais, iniciando pelo conceito de parentalidade com uma retomada histórica de tal conceito, definindo-o como “um campo no qual os discursos (sociais, políticos, científicos, religiosos, jurídicos e outros) criam embates, consensos e novas formas de pensar o cuidado com as próximas gerações.” (p. 176-177)

Segundo Iaconelli, ao cuidador cabe a introdução do infans na sociedade, considerando todos os seus aspectos simbólicos, visto que a cultura permeia as formas como os processos da parentalidade são constituídos, incluindo a responsabilização da mulher pelos cuidados com a prole, mesmo quando é exigido que ela se torne a provedora, levando-a a duplas e triplas jornadas que as adoecem. Para a pesquisadora, o discurso maternalista está inserido em todas as classes sociais, contudo sobrecarrega ainda mais as mulheres negras e de baixa renda. 

As funções paternas e maternas, muito exploradas pela psicanálise e relacionadas pelo senso comum aos papéis de pai e mãe, são revisitadas e reserva-se a atribuição do cuidar às pessoas que terão os primeiros contatos com os bebês, incluindo o cuidado profissional em instituições ou assumidos por outros cuidadores, independentemente do sexo biológico.

A autora afirma que tocam ao cuidador as funções constituintes da subjetividade infantil, em um encontro em que ausência e presença se intercalam, possibilitando ao bebê desenvolver-se. Iaconelli acrescenta que assumir a função parental é assumir a parentalidade e toda a inserção social estabelecida a partir dela, o que independe da concepção biológica, visto que ter um filho diz respeito socialmente a fazer dele um herdeiro, estabelecer seu lugar na história e na fantasia de sua família, ações essas que estão desconectadas das funções de cuidado.

No capítulo “Conclusões”, a autora aborda o que leva alguém a ter filhos, retomando as motivações biológicas e as subjetivas, discutindo também a opção de não os ter. Traz à tona a importante reflexão sobre a redução da natalidade em muitos países, entre eles o Brasil. Estabelece a relação dicotômica entre o estilo de vida contemporâneo e a maternidade, baseada em uma ideia de mulher dessexualizada, que orbita a família e os filhos, cujo efeito colateral é a sua não identificação com esse papel. Assim, conclui que indagar sobre o modelo de maternidade é condição sine qua non para sairmos do modelo atual, repensando os papéis de cuidado com as futuras gerações.

O livro, além de ser uma leitura fundamental para as mulheres que desejam se libertar dos rótulos da maternidade e construir uma vida autônoma e realizada, é recomendado aos profissionais da área da educação, saúde e serviço social que buscam ampliar sua compreensão sobre temas como gênero e reprodução, pois, ao desmascarar as violências e desigualdades que permeiam a experiência materna na sociedade contemporânea, a autora desvenda os mitos e estereótipos que aprisionam as mulheres na armadilha da maternidade compulsória, possibilitando novos olhares e a busca de novas organizações no cuidado com os bebês.

 

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Biografia do Autor

Leides Daiana Freitas Fonseca, Universidade Nove de Julho

Mestranda em Educação

Ligia de Carvalho Abões Vercelli, Universidade Nove de Julho - Uninove

Doutora e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) 

Referências

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Publicado

23.12.2024

Como Citar

FONSECA, Leides Daiana Freitas; VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões. Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução, de Vera Iaconelli, Rio de Janeiro: Zahar, 2023, 253 p. Cadernos de Pós-graduação, [S. l.], v. 23, n. 2, p. 224–227, 2024. DOI: 10.5585/cpg.v23n2.27547. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/cadernosdepos/article/view/27547. Acesso em: 22 jan. 2025.

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