Educação popular e feminismo negro: diálogos e interlocuções

Autores

DOI:

https://doi.org/10.5585/eccos.n63.22520

Palavras-chave:

Educação Popular, Feminismo Negro, Interseccionalidade

Resumo

Zélia Amador de Deus, professora emérita da Universidade Federal do Pará e prefaciadora do livro “Educação Libertadora e Feminismo Negro: uma teia conceitual de resistência à interseccionalidade das opressões de gênero, de raça e de classe”, de Eunice Léa de Moraes, afirmou em seu prefácio que “Tecer teias, talvez seja esta a grande função das mulheres negras na academia para urdir caminhos que possam apontar muitas saídas, a modo das encruzilhadas do poderoso EXU” (DEUS, 2021, p. 16).

O livro de Eunice Léa de Moraes, resultado de sua militância histórica, de seus estudos e, em particular, de sua tese de doutoramento, de fato nos apresenta uma encruzilhada na qual diversos caminhos são possíveis para se pensar relações entre Educação Popular e Feminismo Negro. A autora, em face da encruzilhada, escolhe um caminho: constrói tramas conceituais de resistência à interseccionalidade das opressões de gênero, de raça e de classe.

Parte das seguintes questões: Quais são os referenciais epistemológicos da Educação Libertadora e do Feminismo Negro? E como estes referenciais podem se interrelacionar na perspectiva de uma prática político-pedagógica de resistência à interseccionalidade das opressões de gênero, de raça e de classe? 

Com base nestas questões, em seu livro, Moraes (2021) propõe diálogos e interlocuções, coincidências e divergências, aproximações e afastamentos, entre a obra de Paulo Freire e a de autoras do Feminismo Negro, particularmente, Lélia Gonzalez, bell hooks e Patricia Hill Collins. Trata-se de uma tarefa intelectual desafiadora para as (os) estudiosas (os) da Educação Popular que, mesmo sendo uma corrente crítica de pensamento, não está isenta de reproduzir o sexismo, o colonialismo, o patriarcado e outras estruturas assimétricas de poder.

A autora explica melhor o que pretende em seu estudo ao dizer que a articulação dialógica proposta entre o Feminismo Negro e a Educação Libertadora freireana é mediatizada não apenas pelas referências epistemológicas da afrodescendência das mulheres negras, mas, também, pela dimensão ontológica do pensamento freireano em busca da autonomia, da liberdade, do ser mais.

Metodologicamente, Eunice Léa de Moraes elabora uma teia conceitual a partir de algumas das principais obras de Freire, Gonzalez, hooks e Collins, denominada como “Teia de Articulação Conceitual de Resistência à Interseccionalidade das Opressões de Gênero, de Raça e de Classe”.

A categoria da interseccionalidade é fortemente presente no estudo de Moraes (2021). Para sua fundamentação, traz autoras brasileiras, como Lélia Gonzalez, e outras estrangeiras, como Angela Davis, que se soma às demais autoras estadunidenses já citadas. Moraes (2021, p. 85) nos diz que “a interseccionalidade seria um modo de enlaçar as consequências da interação entre formas de subordinação, tais como, racismo e sexismo”.

A categoria da interseccionalidade é fundamental ao Feminismo Negro e aos estudos da autora porque ajuda a superar “equívocos teóricos de um feminismo de representação social, em que todas as mulheres são oprimidas igualmente, sem diferenciação de classe, de raça, de sexualidade etc” (MORAES, 2021, p. 66).

O diálogo propriamente dito entre o Feminismo Negro e a Pedagogia Crítica de Paulo Freire, embora construído ao longo do livro, é feito com centralidade no quarto e último capítulo da obra, no qual a autora apresenta uma proposta de articulação epistemológica entre estes paradigmas críticos de pensamento e de ação política.

Neste capítulo, além de Paulo Freire, outros nomes das chamadas Pedagogias Críticas são invocados para pensar a educação como território de disputa e de construção de (contra)hegemonias. A formação marxista da autora, revelada desde a apresentação ao livro, mostra-se aqui com nitidez quando analisa o papel da educação na reprodução ou transformação do capitalismo. Porém, ancorada na noção de “interseccionalidade” e nos seus estudos sobre o Feminismo Negro, Moraes (2021) apresenta as seguintes teias conceituais: (i) da interseção do capitalismo com o racismo e o sexismo; (ii) dos principais pontos norteadores e estruturantes dos saberes da Educação Libertadora freireana e do Feminismo Negro; (iii) da opressão na perspectiva freireana e do Feminismo Negro e; (iv) por último, a teia de articulação epistemológica entre a Educação Libertadora de Freire e o Feminismo Negro de Gonzalez, hooks e Collins em relação à opressão.

Quanto aos conceitos que possibilitam maior diálogo e interlocução entre a Educação Libertadora e o Feminismo Negro, a autora menciona: autonomia; conscientização; conhecimentos subjugados; diálogo; identidade cultural; libertação; luta política; opressão de classe, de gênero e de raça; práxis revolucionária e resistência. 

Para cada um destes conceitos, Moraes (2021) nos revela os elementos convergentes das epistemologias da Pedagogia Freireana e do Feminismo Negro, de fato construindo uma teia conceitual explicitada em textos, quadros, diagramas, fluxogramas.

O livro é eminentemente teórico, já que suas pretensões são de ordem epistemológica. No entanto, a autora, a todo o momento, provoca-nos a refletir criticamente sobre a realidade e os processos de exclusão de mulheres negras das classes populares. Em face do contexto de opressão das mulheres negras trabalhadoras é que a autora sustenta sua tese de que é possível uma articulação epistemológica da Educação Libertadora com o Feminismo Negro, “na defesa de um projeto político-pedagógico fundamentado na teoria social crítica, com o propósito de alcançar a justiça social, por meio do princípio da equidade” (MORAES, 2021, p. 126).

Defende, ainda, que a negação do direito à diferença ataca frontalmente os princípios fundamentais de sociedades justas, democráticas e humanizadoras. Por isso, a categoria da interseccionalidade nos ajuda a desmistificar o consenso hegemônico de um conhecimento universalista.

O objetivo que persegue, para além do epistemológico, revela-se aqui:

 

parte-se do contexto cultural de grupos sociais oprimidos de mulheres negras, evidenciando seus saberes e suas experiências, com a pretensão de que este grupo social oprimido, com o processo da educação libertadora, ao perceber a realidade objetiva, possa analisar o seu contexto cotidiano e engajar-se na luta de classes, que envolve gênero e raça e apropriar-se da prática crítica de pensar a sua prática. Dessa maneira, estaria se manifestando e libertando-se de sua condição opressora interseccionada ao capitalismo, ao racismo e ao sexismo (MORAES, 2021, p. 130). 

 

O livro de Eunice Léa de Moraes, a meu ver, torna-se leitura obrigatória para aquelas e aqueles interessadas (os) em pensar a Educação Popular a partir da interseccionalidade das opressões e, em particular, das contribuições do Feminismo Negro.

Não é trivial que entre as principais referências da Educação Popular no Brasil e no mundo saiba-se muito pouco ou quase nada sobre as contribuições de educadoras populares feministas e antirracistas. A Educação Popular, de fato, é um movimento e uma corrente de pensamento abertos à denúncia das opressões interseccionadas, como nos mostra Eunice Léa de Moraes. Mas ainda existe um longo caminho para a superação do racismo, do sexismo, do patriarcado, do colonialismo e outras estruturas de poder denunciadas pela Educação Popular, mas ainda reproduzidas, de algum modo, na produção bibliográfica deste campo do conhecimento.

Como corrente crítica de pensamento, a Educação Popular não deve temer ser criticada ou criticar-se a si mesma. Que tomemos o estudo de Eunice Léa de Moraes para evidenciar que sim, a Educação Libertadora dialoga com o Feminismo Negro, mas este é um diálogo que precisa abrir-se mais, no sentido de: a) visibilizar aportes teórico-metodológicos de educadoras populares feministas e antirracistas; b) reconstruir a memória da Educação Popular com a presença destas mulheres subjugadas; c) evidenciar, por outro lado, o potencial da Educação Popular para o Movimento Negro e o Feminismo Negro.

 

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Biografia do Autor

João Colares da Mota Neto, Universidade do Estado do Pará – Uepa.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará, com Doutorado Sanduíche na Universidad Pedagógica Nacional de Colombia. Realizou investigações de pós-doutoramento na Universidad de Sevilla e na Universdad de Málaga, Espanha. Coordenador da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amzônia.

Referências

DEUS, Zélia Amador de. Prefácio. In: MORAES, Eunice Léa. Educação Libertadora e Feminismo Negro: uma teia conceitual de resistência à interseccionalidade das opressões de gênero, de raça e de classe. Curitiba: Editora CRV, 2021.

MORAES, Eunice Léa. Educação Libertadora e Feminismo Negro: uma teia conceitual de resistência à interseccionalidade das opressões de gênero, de raça e de classe. Curitiba: Editora CRV, 2021.

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Publicado

22.12.2022

Como Citar

COLARES DA MOTA NETO, João. Educação popular e feminismo negro: diálogos e interlocuções. EccoS – Revista Científica, [S. l.], n. 63, p. e22520, 2022. DOI: 10.5585/eccos.n63.22520. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/eccos/article/view/22520. Acesso em: 16 abr. 2024.