“Queimem a bruxa!”: Butler e aqueles que têm medo de gênero
DOI:
https://doi.org/10.5585/2025.27919Palavras-chave:
ideologia de gêneroResumo
O livro “Quem tem medo de gênero?” de Judith Butler foi publicado no ano de 2024. O Brasil foi o primeiro país em que a obra foi lançada, após uma visita da autora à cidade de São Paulo em 2017. A primeira edição foi publicada pela editora Boitempo (272 páginas), com tradução para a Língua Portuguesa realizada pela tradutora e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas, Heci Regina Candiani.
Judith Butler é estadunidense, nascida na cidade de Cleveland, no estado de Ohio, em 1956. Se declara judia, lésbica, feminista e ativista. É filósofa pós-estruturalista, e obteve seu PhD pela Universidade Yale em 1984. Postulou teorias sobre gênero que se tornaram conhecidas em âmbito global. Justamente por isto, tem sido duramente criticada por movimentos conservadores, feministas antigênero e transexcludentes, neoliberais, religiosos, dentre outros. Atualmente, é professora do Departamento de Pós-Graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde mora.
A sua primeira obra é intitulada “Problema de Gênero: feminismo e subversão da identidade”, publicada em 1990. Nessa obra desenvolveu-se diversas reflexões que influenciaram na modificação dos ideais do movimento feminista. Dentre as principais reflexões, pode-se destacar, a teoria da performatividade (gênero como uma construção e reprodução social), o feminismo e a teoria queer, o anticolonialismo e outros.
A obra em tela (Butler, 2024) foi produzida e publicada após uma visita da autora ao Brasil em 2017, para lançar “Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo” (2017). Durante sua estadia no país foi recebida de maneira hedionda, com xingamentos de bruxa e com queima de uma boneca de bruxa com as suas características[1]. Diante desse cenário, Butler se propõe a divulgá-lo inicialmente no país, com análises e contra-argumentos sobre os movimentos antigênero que ganharam proporções sociais, culturais e políticas em diversas partes do mundo.
No Brasil à época presidido por Jair Bolsonaro[2], com a terminologia “ideologia de gênero”, as teorias de gênero foram colocadas pela direita conservadora como instrumento de ansiedades e medos sociais, a partir de uma visão fantasmagórica, principalmente sobre a educação infantil e acadêmica, como forma de inutilização de categoria de análise que se popularizou a nível global. Fernando Balieiro (2018) já apontava como a categoria gênero era um alvo do que academicamente se compreendeu como a formação de um pânico moral contemporâneo, em decorrência da utilização de recursos discursivos estratégicos para subverter os avanços nos direitos sexuais e reprodutivos como ameaças, potencializando os empreendimentos morais em debates públicos nas mídias convencionais, nos parlamentos e nas redes sociais[3].
“Quem tem medo do gênero” é uma obra composta por 10 capítulos. Em um primeiro momento, e que vai ser utilizado ao longo do livro, Butler (2024) apropria-se de um pensamento dos psicanalistas Jacques Lacan, Jean Laplanche e Freud. Descreve sobre a lógica do fantasma, a partir de uma análise da reprodução de gênero como uma ideologia que visa a destruição, e, consequentemente, acionar modos de demonização e enfrentamento ao temido tema. Essa fantasia é tida como uma “forma de organização de mundo forjada pelo medo de destruição pelo à qual o gênero é considerado responsável” (Butler, 2024, p. 17).
Diante disso, com o governo de Bolsonaro (2019/2022) e o governo estadunidense de Donald Trump (2017/2021), o pensamento crítico sobre gênero é minado pelas generalizações que visam fortalecer o conceito de gênero como estritamente à lógica determinista e biológica do sexo. Desse modo, o medo e ódio sobre gênero ganham proporções ainda maiores com as alianças governamentais à visão religiosa cristã da complementaridade e a heteronormatividade nos conceitos de família, relações sexuais, direito ao aborto, igualdade de gênero e educação sexual nas escolas.
Em um segundo momento, Butler (2024) analisa aos longos dos últimos anos (2013-2024) o posicionamento contraditório do Vaticano em relação às pessoas que não estão enquadradas nas normas construídas, como uma busca por relacionar a homoafetividade a pedofilia. Nesse contraponto, a autora defende que a Igreja distorce o discurso de modo a atacar minorias sobre os problemas que ela mesmo enfrenta: os mais de 300 mil casos de denúncias de relações sexuais de padres com crianças e jovens.
A ideia de uma perigosa Ideologia de Gênero surgiu na década de 1990, quando o Pontifício Conselho para a Família alertou que o “gênero” era uma ameaça à família e à autoridade bíblica. Pode-se traçar as origens da ideia através dos documentos deste Conselho para a Família, mas desde então, ela tem percorrido caminhos que acompanham o poder político do Vaticano, bem como a sua aliança recentemente formada com a igreja evangélica na América Latina (Butler, 2024, p. 41)
Diante de um cenário fantasmático, estudar e discutir sobre gênero torna-se algo “perigoso”, na visão dos movimentos políticos antigênero e religiosos, inclusive sobre o próprio pronunciamento da palavra “gender” (“gênero”, em inglês). Este cenário, para Butler (2024), dificulta a compreensão aberta de gênero e as suas diversas possibilidades, inclusive em termos linguísticos e de tradução ou não em diversos lugares do mundo.
Em um terceiro momento, com uma análise da vida corporificada, a autora destaca diversas dificuldades para ações progressistas sociais no âmbito político, como a garantia de direitos fundamentais para as pessoas gays, lésbicas, trans, intersexo e não binárias. Argumenta que esses indivíduos são impedidos de encontrar ambientes não-tóxicos, igualitários, e em especial, que seus corpos possam viver sem medo das suas expressões. Pela perspectiva da “Família Natural”, reforçada pela Igreja e pelos movimentos antigênero por meio de campanhas morais, essa articulação enfatiza a patologização, a reparação e a criminalização dessas vidas.
O ódio é alimentado e racionalizado pela retidão moral, e todas as pessoas prejudicadas e destruídas por movimentos odiosos são apresentadas como as verdadeiras agentes da destruição. Essa projeção e inversão estruturam o cenário fantasmático do “gênero”. Ficamos, assim, com duas perguntas urgentes: quem quer destruir quem? E de que modo as formas de sadismo moral compartilhado e crescente se manifestam como uma ordem virtuosa? (Butler, 2024, p. 16)
Com isso, a proposta colocada por Butler (2024) é reduzir esse fantasma e revelar a falsidade colocada pelos grupos antigênero, a fim de produzir um outro imaginário sobre essas narrativas que contrapõe o modo de vida mais livre e vivenciável. Assim, a autora engendra uma tentativa de argumentar contra os variados pontos em que buscam demonizar os estudos sobre gênero.
Um deles é a própria discussão sobre o termo ideologia, apropriada pelos grupos de direita e conservadores das postulações de Marx e Engels, e colocada como uma forma de falso conhecimento ou como um “ponto de vista”, sem considerar os diversos elementos históricos críticos dos estudos sobre a ideologia. Assim, o gênero é posto como uma visão totalitária que visa acabar com regimes democráticos, instituindo o fascismo e acabando com a ordem natural por aquilo que acreditam ser dado pelo deus do cristianismo.
Outro ponto levantado por Butler (2024) é sobre o que, ao discutir gênero, é promovido. Isso seja talvez o verdadeiro medo de quem ataca o gênero a partir de um viés religioso: a autoridade patriarcal, a dominação masculina e as estruturas de poder, postas socialmente. Tendo isto em vista, os estudos de gênero colocam em pauta termos sobre a igualdade salarial entre homens e mulheres, a liberdade sexual, a liberdade das mulheres para decidirem sobre o próprio corpo - como a questão do aborto - e participação política efetiva de grupos minorizados, como negros, colonizados e outros.
A partir de uma visão política, Butler (2024) elenca que gênero é rejeitado por distintas formas e por diferentes governos, exemplificando essa visão distorcida como na Rússia de Vladimir Putin, através do apoio da Igreja Ortodoxa Russa, em que gênero é uma forma do ocidente de controle e destruição da identidade nacional – destaca o posicionamento do presidente em relação aos países da Europa com maior aceitação à temática, chamando-a de “gayropa”.
Entretanto, a autora destaca que a visão de rejeição ao gênero ganha formatos diferentes a depender da cultura, da política e dos argumentos nos países do mundo. Na Polônia, por exemplo, é criado zonas “livres de LGBT” como modo de demarcação territorial do preconceito. Em países da África, Butler (2024) enfatiza a influência de grupos evangélicos pentecostais na visão sobre o fantasma do gênero. No caso da Uganda, proíbe-se rigorosamente qualquer expressão de homossexualidade com penas de morte.
Em outro momento, a autora alude ao fato de que os movimentos feministas antigênero não consideram as pessoas trans como mulheres, abrindo questionamentos inclusive sobre o que é ser mulher ou o que torna uma pessoa uma mulher. Assim, essa vertente do feminismo parte de uma visão do senso comum, positivista, sobre a determinação biológica, hormonal e genital. E além disso, generaliza as pessoas com pênis como potenciais estupradores - incluindo pessoas trans ao usarem o banheiro feminino - como se o estrupo fosse causado somente pela penetração indesejada por pênis e não também por objetos, o que pode acontecer inclusive por outras mulheres “naturais”, ditas assim concebidas no nascimento.
Com isso, são colocados os desafios para o debate de gênero como um constructo social: na visão feminista transexcludente, a ideologia de gênero não considera os aspectos biológicos, enquanto promove uma visão determinista dele. Entretanto, Butler (2024) traz a análise de gênero a partir da interação humana e ambiente, sendo social, ambiental e psicológica. Assim, como para viver é preciso de se nutrir com alimentação, o social entra como parte fundamental na vida de uma pessoa. Portanto, o gênero pode ganhar uma proporção biopsicossocial.
Butler (2024) defende gênero como um campo aberto, a ser discutido e não colocado como um determinismo, mas como parte daquilo que envolve a liberdade de se viver bem. Ao mesmo tempo que o sujeito pode se declarar homem ou mulher, possui também a liberdade de não se enquadrar somente neste binarismo – como uma pessoa trans que se declara mulher, ou outra que se identifica/autodeclara de outras formas.
Destarte, “Quem tem medo de gênero?” (Butler, 2024) apresenta um panorama sobre a complexidade e a amplitude que tem a temática de gênero. A autora considera que gênero, em diversos campos sociais e movimentos, é atacado como critério de análise, recaindo no binarismo, no determinismo biológico sexual, ou em ordens religiosas da complementaridade e heteronormatividade. Com isso, busca ampliar o debate sobre gênero, inclusive sobre termos biológicos, ambientais e sociais. Além disso, propõe pontos relevantes a serem refletidos sobre o imperativo de grupos brancos eurocêntricos sobre a configuração de gênero em países colonizados.
O livro tem uma leitura complexa, e em alguns pontos exige que o leitor saiba da contextualização em que a autora exemplifica seus argumentos, sobretudo ao tecer suas análises considerando cenários políticos e sociais específicos. De outro modo, a obra traz a reflexão que debater e discursar sobre gênero é um exercício que exige enxergar os diversos pontos que o contextualizam, bem como tratar sobre causas importantes, tais como as estruturas de poder estabelecidas socialmente, e os acessos e direito à uma vida digna e livre de preconceitos, em que todos possam conviver em ambientes vivenciáveis e com suas liberdades garantidas. Portanto, a obra é uma leitura essencial para quem estuda gênero e sexualidade, pois oferece uma atualização do assunto em várias partes do mundo, enfatizando a abordagem decolonial e anti às múltiplas formas de preconceitos. Vale a leitura!
[1] O Instituto Humanita Unisinos noticiou o ocorrido em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-2017/573413-queimem-a-bruxa-visita-de-judith-butler-provoca-manifestacoes-nas-ruas-de-sao-paulo>. Acesso em 18 de dezembro de 2024.
[2] Santos (2023) aponta como o bolsonarismo utilizou a ofensiva antigênero como “cortina de fumaça” para avançar em sua plataforma ultraneoliberal, ao mesmo tempo em que propôs uma reconfiguração regressiva no campo das relações sociais, pautadas por um conteúdo ideologicamente moralista e machista.
[3] Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017) traçam uma genealogia do termo “ideologia de gênero” e apontam como o pânico moral contemporâneo se constituiu como uma nova gramática política empreendida por grupos de interesses conservadores em rebate aos ideais dos movimentos feministas e LGBTs. Para uma melhor compreensão sobre a terminologia, recomenda-se Novaes, Andrade e Santos (2020).
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Referências
BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. “Não se meta com meus filhos”: a construção do pânico moral da criança sob ameaça. Cad. Pagu, Campinas, n. 53, e185306, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000200406&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 02 abril 2019. Epub June 11, 2018. Doi: https://doi.org/10.1590/18094449201800530006.
BUTLER, Judith. Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Lucy Magalhães. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1990.
BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? São Paulo: Boitempo, 2024.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para uma genealogia de um pânico moral contemporâneo. Soc. estado., Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-748, dezembro de 2017. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922017000300725&lng=en&nrm=iso. Acesso em 18 de dezembro de 2024. Doi: https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3203008.
NOVAES, Edmarcius Carvalho; ANDRADE, Jakeline Soares; SANTOS, Tainara Adriane dos. Ideologia de gênero: o que dizem periódicos brasileiros?. Revista Educação, Psicologia e Interfaces, v. 4, p. 35-50, 2020.
SANTOS, Sonara Suenia Costa dos. Para além da cortina de fumaça: a ofensiva anti-gênero sob o Bolsonarismo. Dissertação de Mestrado em Serviço Social. Universidade do Estado do Rio Janeiro. 2023. Disponível em: https://sucupira-legado.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=13992460#. Acesso em 18 de dezembro de 2024.
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