Educação de sensibilidades ou solidões destroçadas
DOI:
https://doi.org/10.5585/2025.28034Palavras-chave:
educação, sensibilidades, solidões destroçadasResumo
Diário da tristeza comum surge como um sopro que avassala almas e corpos. Eis a síntese poética-imagética do livro: “– O que está fazendo, pai? – Procurando meu coração, que caiu naquela noite. – Acha que vai encontrá-lo aqui? Onde mais? Eu me curvo e o cato de grão em grão, como fazem a camponesas que colhem as azeitonas em outubro, uma azeitona por vez. – Mas você está catando pedrinhas! – Algo assim exercita a memória e a percepção. Sabe-se lá, talvez essas pedrinhas sejam pedaços petrificados de meu coração. E, mesmo que não, ainda assim eu me habituaria a procurar por conta própria algo que me fez sentir perdido quando se perdeu. O mero ato de procurar é a prova de eu me recuso a me perder na minha perda. No outro lado dessa tentativa está o indício de que estou de fato perdido enquanto não encontrar o que perdi” [1]. Uma síntese cujos ressoares estão presentes durante toda a leitura do livro.
A tradução não poderia estar em melhores mãos. Safa Jubran, na verdade, já traduziu muitos livros do mesmo autor e de outros. Não por um mero acaso Safa Jubran recebeu em 2019 o Sheikh Hamad Award for Translation and Internacional Understanding pelo conjunto de obras que já conseguiu traduzir. No entanto, nesta obra e em todas as traduções que realiza, Safa consegue transpor com sensibilidade e erudição, as dificuldades de traduzir o além das palavras. Pulsações. Ritmos. Musicalidade.
Com isso convoca e solicita seriamente nossos sentidos. Questões ligadas a traduções estão sempre envolvidas por uma grande complexidade. Mas em se tratando do árabe para o português temos que admitir que o grau de complexidade se torna mais agudo. “O árabe é uma das línguas mais belas. Uma das portas do sagrado. Fogo primordial. Tempo Forte. Tempo Mítico. Para Massignon, o árabe não sofre a anemia das línguas modernas. Sua estratégia é outra. Não se utiliza de períodos amplos e hierarquizados. Subordinadas de Subordinadas. Conjunções gradativas. O árabe coagula e condensa, com a força do ferro e o brilho do cristal, a ideia que emerge do Sagrado” [2] .
Portanto, de saída, já temos uma questão importante que não importa somente a tradutores. A questão é mais ampla. Situar-se entre duas línguas com estruturas tão diferentes não é um empreendimento simples. E aqui vai mais um argumento do que declarei anteriormente: Safa Jubran nasceu no Líbano e chegou ao Brasil em 1982. Tinha vinte anos quando chegou neste país. Ora! Talento de sobra para fazer as escolhas as quais todos os tradutores precisam fazer. Sensibilidade aguçada que completa, em parte, o circuito, nada simples, de seu talento que tem e deve se tornar extensível a questões lexicais bastante complexas. Certa vez perguntaram a Marco Lucchesi em uma entrevista: “Para um tradutor basta conhecer somente um outro idioma ou deve ter outras qualidades?” [3]. Ao que ele respondeu: “Todas as qualidades possíveis. Insisto na palavra leitor-tradutor. Quase algo assim como leitradutor. Escrito assim, tem-se a impressão que o tradutor legista – embora também o faça, em sua precária república de nomes. O tradutor deve assumir com variados horizontes culturais. A condição de leitor impõe-lhe essa tarefa. Como se conhecer duas línguas fosse bastante...Mas não é! Lembro de Lucien Febvre, dizendo aos historiadores: não sejam historiadores, mas antes, arqueólogos, estudiosos de direito, amantes da arte, leitores de economia e sociologia, atentos aos estudos teológicos, científicos e literários, só depois a história virá com mais vigor. O mesmo para os tradutores. Façam esse percurso, e só depois voltem ao estado inicial. Se não conhecermos a literatura brasileira e portuguesa a fundo, não inventamos a terceira margem necessária”[4]. Não custa lembrar, inclusive, de Paul Ricoeur em relação a questões sobre tradução: “Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequências curtas ou longas?” [5].
O livro em questão centra-se, em particular, nos dramas angustiantes de um palestino que vive as suas próprias dores e a de seu povo ao contemplá-lo, necessariamente, em meio a destroços de invasão. Durante todo o livro Darwich se volta ora para as ruínas pretéritas dos palestinos, ora para os destroços do presente. Oscilações de tempo e de memória mesclam-se durante a narrativa. Intercruzam-se. Fragmentos de memória iluminadas por explosões de fúrias buscam respostas, em todos os níveis, que jamais chegam. Por descaso, assim como por cegueiras intencionais a favor de posições ideológicas que favorecem economias globais que não podem perder seus espaços na longa escala dos “valores” aviltantes.
Oscilações que se misturam de forma desordenada com o presente do narrador, um passado menos distante e outro mais distante. Os níveis de tempo-memória obedecem aos ritmos subjetivos do autor-narrador. Imagens aparentemente ocultas. Existe um pulsar latejante. Movimento. De repente imobilidades. Como se os relógios internos e externos do narrador tivessem parado. Lembremos que os ritmos de uma memória, voluntária ou involuntária, prendem-se fundamentalmente aos fios do presente sob as dores de um homem que enfrenta perdas.
As perdas espaciais de terras que foram invadidas pelas mais diversas formas. E de repente os invadidos passam a ser estrangeiros em sua própria pátria. “O que é a pátria? O mapa não é a resposta. E a certidão de nascimento não é mais a mesma. Ninguém teve que enfrentar essa questão como você desde este momento até morrer ou se arrepender, ou se tornar um traidor. Contentar com isso não basta, pois o contentamento não provoca mudanças nem explode coisa alguma, e a desorientação é imensa” [6].
Este livro também é uma contribuição original e mais do que indispensável para os historiadores, em especial, para aqueles que seguem cartilhas historiográficas denominadas “documentais”! “Não pergunte ao professor de história. Ele ganha seu sustento contando mentiras e, à medida que a história se torna mais remota, as mentiras se tornam mais inocentes e menos prejudiciais. Esse professor de história conhece você muito bem”[7]. Vemos, mais de perto, dramas e questionamentos que a sensibilidade auscultou e reteve de maneira muito próxima aos “fatos reais” e como tal, muito além de qualquer historiografia. Entretanto, não somente para historiadores. Seria reduzir a importância desta obra. Necessária para todos que aspiram ficar mais cientes das mentiras traçadas e fundamentadas em posições ideológicas tendenciosas que mascaram, de perto e de longe, fontes mais dignas de serem ouvidas. Lembremos que uma literatura de peso, como é o caso deste livro, a partir de uma situação aparentemente individual universaliza os questionamentos apresentados. O que não passou despercebido, em muitos aspectos, por Adonis [8] em seus ensaios sobre a prosa e poética árabes.
1 Ilustração de Ana Maria Haddad Baptista
Este romance não possui apenas relatos de um homem que descreve as dores, as lágrimas, as injustiças, perversidades ao ser invadido e despojado de suas terras. Não. Diário da tristeza comum e daí “tristeza comum”. Ele é muito mais do que isso. Existe, na verdade, uma universalidade que o irmana aos grandes escritores. Ou seja, a expressão em alto grau da tristeza. Das paixões tristes que atravessam, em algum momento, a humanidade. E muito mais do que isso! Existe uma solidão cósmica, por lembrar de Cioran, e uma individual, como por exemplo no seguinte fragmento: “Quando você anda pelas ruas da cidade, você se sente sozinho. Não é a cor da pele que declara sua identidade, nem ser perseguido pela polícia. A própria rua o condena, declarando quem você é por ser o único jovem por perto. Quem andava na rua naquela época era árabe. Os velhos e os jovens o amaldiçoavam e você ficava com vergonha de estar na rua. Todos os quiosques de falável e de sanduíche estão vazios, assim como todos os cinemas. O país inteiro está vazio de jovens. Há muitos jornais por aí. Você não sabe quem os entrega ou lê, mas percebe que são as crianças do ensino fundamental que entregam a correspondência e as garrafas de leite” [9].
Se a solidão é, como sabemos, uma condição humana, como também já nos alertou Octavio Paz em seu belo ensaio Dialética da Solidão, neste livro ela se torna mais uma perspectiva. Aquela que queiramos ou não dialoga com Edward Said, com muitos pontos em comum, e com Giorgos Seferis, expulso da Turquia, – [Nosso país é fechado, todo em montanhas/ Que tem por teto, dia e noite, o céu baixo. /Não temos rios, não temos poços,/ Não temos fontes/ Somente algumas cisternas, também vazias;/Elas ressoam e para nós são objetos de adoração. / Um som morto e cavo, semelhante a nossa solidão, / Semelhante a nosso amor, semelhante a nossos corpos. / Parece estranho que se houvesse podido outrora construir/ Nossas casas, nossas cabanas e nossos currais de carneiros. / E nossos matrimônios com suas coroas frescas e seus anéis/ São insolúveis enigmas para nossa alma. / Como puderam nascer nossos filhos?/ Como então cresceram eles?/ Nosso país é fechado. As duas negras Simplégades. / O encerram. Nos portos. / Domingo, quando descemos para tomar fresco,/ Vemos cintilar no sol poente/ Os destroços das viagens que jamais terminaram, / Corpos que não sabem mais amar. [10] ] voz poética poderosa... por falar de um escritor grego contemporâneo, Nobel de literatura, esquecido até pelos gregos. Voz que interveio, na teoria e na prática, nas eternas brigas por espaços dominados pelos interesses de poderes estabelecidos e que não poupam perversidade, sadismo, assédios dos mais variados, humilhações em todos os níveis.
Ilustração de Ana Maria Haddad Baptista
Um romance, conforme sabemos, somente se justifica como tal, não apenas pelo seu conteúdo. Se assim fosse seria um relatório ou uma tipologia textual técnica. Mas diário da tristeza comum se caracteriza por imagens, metáforas e, sobretudo, uma carga poética muito intensa, como por exemplo:
Ilustração de Ana Maria Haddad Baptista
Quando as lágrimas se atam aos ponteiros do relógio,
Jerusalém se torna o tempo e o lugar de nossos olhos.
Tudo está fora de nós: as cidades, as lágrimas, a noite que não acaba.
Dentro de nós, as armas apontadas para os aviões e
para a saudade dos profetas ficam em posição [11].
Ou...
Me chame do que quiser.
Agora é a minha vez de me chamar do que eu quero
e fazer o que eu quero fazer.
Vou plantar meu pé no coração do mundo [12].
Ilustração de Ana Maria Haddad Baptista
Quase impossível ler este livro sem os ecos implícitos, sem a escuta insistente,
sem as constantes sonoridades de nós mesmos e do autor Mahmud Darwich, e esquecer
de A morte de Virgílio [13]:
Toda a lei se transforma em acaso, na queda do abismo,
E também tu, ó destino, te tornas acaso, para o acaso
Te arrasta o acaso do fim, em delírio no teu reino;
Subitamente para o crescimento e os ramos do conhecimento
rebento a nascer de rebento, desintegram-se de súbito
em destruída linguagem, isolados em objecto,
isolados na palavra, desfeita a ordem, desfeitas a verdade, a comunhão e a unidade
hirtos por incompletos, hinos no emaranhado da existência pseudo-real.
Produzes o incompleto, toleras o acaso,
Tens de tolerar a desgraça, o incompleto, a ilusão, e
tu próprio irrealizado, a tua forma que se fixa
sem eternidade, destino do destino, morres
de desgraça, ainda encerrada no cristal comigo.
Ao finalizarmos a leitura deste livro sentimos, vergonhosamente, o quanto a humanidade esteve e está muito distante de uma solidariedade mais efetiva. O quanto imersos em nossa individualidade (afogada-embriagada), queiramos ou não, deixamos de ouvir lamentos que deveriam nos unir para que soluções mais imediatas se tornassem reais, efetivas, em busca de uma justiça que tivesse como princípio conceitos autenticados por valores dignos e admiráveis.
Que, de fato, removessem a inutilidade da violência e despertassem a humanidade da sonolência que em todas as épocas enterrou os esquecidos e refugiados invisíveis comparáveis somente à anatomia interna de um belo cavalo puro sangue árabe em sua costumaz altivez ao produzir como nenhum outro animal ritmos de temporalidades superiores a qualquer humano! E sempre prestes, sejamos francos, a qualquer momento, como diria Bataille, à uma explosão fulgurante.
[1] Mahmud Darwich. diário da tristeza comum. Tradução de Safa Jubran. Rio de Janeiro: Tabla, 2024. P. 11.
[2] Marco Lucchesi. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2000. P. 61.
[3] Marco Lucchesi. O poeta do diálogo. São Paulo: Tesseractum/ FUNDARTE, 2022. P. 105.
[4] Idem.
[5] Paul Ricoeur. Sobre a Tradução. Tradução de Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. P. 25.
[6] diário da tristeza comum, p. 35.
[7] Idem, p. 38.
[8] Adonis. Poesía Y Poética Árabes. Tradução do árabe de Carmen Ruiz Bravo-Villasante. Madri: Ediciones del oriente y del mediterrâneo, 1997.
[9] diário da tristeza comum, p. 116.
[10] Giorgos Seferis. Poemas. Tradução de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Mapa Mundi, 1971. P. 63.
[11] Este trecho do livro está em prosa. Colocado em forma de poema para destacar os ritmos de uma poesia mais materializada. diário da tristeza comum, p. 129.
[12] Idem, p. 146.
[13] Hermann Broch. A morte de Virgílio. Tradução de Maria Adélia Silva Melo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2014. P. 105.
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Referências
Adonis. Poesía Y Poética Árabes. Tradução do árabe de Carmen Ruiz Bravo-Villasante. Madri: Ediciones del oriente y del mediterrâneo, 1997.
Giorgos Seferis. Poemas. Tradução de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Mapa Mundi, 1971.
Hermann Broch. A morte de Virgílio. Tradução de Maria Adélia Silva Melo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2014.
Mahmud Darwich. diário da tristeza comum. Tradução de Safa Jubran. Rio de Janeiro: Tabla, 2024.
Marco Lucchesi. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Marco Lucchesi. O poeta do diálogo. São Paulo: Tesseractum/ FUNDARTE, 2022.
Paul Ricoeur. Sobre a Tradução. Tradução de Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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