MENEZES, Luís Carlos de. Educar para o Imponderável: Uma Ética da Aventura. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2021. 232 p.
DOI:
https://doi.org/10.5585/eccos.n62.22183Palavras-chave:
Educação, Ética, complexidade, Biosfera, CulturaResumo
Este livro de título instigante, lançado pelo consagrado físico e educador Luís Carlos de Menezes, é, sobretudo, provocadoramente atual em suas reflexões. Sem que saibamos todos os detalhes dos percalços e adversidades, continuamos aqui, seres humanos filhos do caos. Sobreviventes de várias versões e mutações, de alfa a ômicron. Um pêndulo parece oscilar entre passado e presente, revelando as estratégias de sobrevivência da espécie humana em diferentes contextos sociais, históricos e culturais. Invasores de todos os continentes e dos recursos da biosfera, desenvolvemos a linguagem simbólica e agrupamo-nos em civilizações, impérios e diversas culturas (p.145). Surgiram os dramas e as tragédias nos últimos dez mil anos. Imbuídos de razão e lógica, somos animais que sabemos contar e calcular, mas parece termos aprendido muito pouco com nossos próprios conflitos, guerras, batalhas, extermínios, entre outros domínios voltados à opressão e submissão. Atravessados, ainda, por um coeficiente de poder que decorre de outra estratégia de sobrevivência – política, bandos e hordas (p.32) – desde cem mil anos atrás, somos criaturas gregárias que aprendemos a manusear e registrar instrumentos e constructos dentro de uma cultura. Nesse percurso, porém, precisamos inventar a instrução. Somos seres necessitados de educação.
Surgida a partir de uma intencionalidade, dentro do contexto de sobrevivência da espécie, a educação revela, além de um caráter simbólico e político, uma terceira dimensão do existir humano que é a da prática, de onde vem a importante categoria “trabalho”. Mas a aceleração da história (p.14) ou a aceleração do tempo histórico (p.52), concernentes às revoluções industriais, globalização cultural e econômica e às revoluções tecnológicas, inclusive da informação, coloca-nos num dilema do processo civilizatório.
O domínio do fogo e da agricultura, levaram milênios no começo da civilização; já as revoluções econômicas, mercantis e industriais, levaram séculos ao longo da modernidade; agora, na sociedade contemporânea, já ocorrem décadas ou mesmo em anos mudanças econômicas, sociais e culturais de alcance global (p.52).
Para tal transcendência (p.15), motivada pela aceleração do tempo histórico (a lembrar o contexto da Sociedade do Cansaço, do livro homônimo do pensador Byung-Chul Han), pela percepção de descompasso entre a pirâmide de competências produtivas (p.39) e na busca por uma ética (p.44), Menezes nos convida a pensar sobre o educar para o imponderável, lançando mão de uma ética para a aventura.
A capa, assinada por Marcelo Chui, gera uma expectativa no leitor de que o discurso sobre a estética da arte provavelmente se aliará a alguma reflexão filosófica, perpassada, quem sabe, por um diálogo com a física. Todavia, Menezes não se volta a um discurso explícito sobre a arte, ainda que esta perpasse sua argumentação em alguns momentos e mesmo seu modo de escrita ensaístico. De fato, ao enveredar pela ética da aventura, proposta desde o título pelo autor, lê-se não somente os diálogos entre áreas, mencionados anteriormente, mas também com a história, a sociologia, a economia, a cultura, a tecnologia, entre outros, alimentados pela vasta erudição do autor. Menezes é um físico com veia literária, cuja escrita ensaística é capaz de desencadear profundas reflexões educacionais em um momento para, de um salto, colocar o leitor diante de diálogos com a filosofia e a ciência, entre outros, capturados nas veredas da cultura.
A tese principal defendida por ele neste livro é a de que ao produzirmos as revoluções industriais e pós-industriais em ritmos cada vez mais frenéticos, ao acelerarmos os movimentos históricos, produzimos cada vez mais indeterminações. Assim, ao invés de transpor barreiras de ordem social, econômica e cultural, o que se criam são mais obstáculos. Outra ideia apresentada por ele é a de que se vislumbrava que a mecanização e a automação gerariam uma revolução do trabalho (p.16, 23, 32, 61), mas que a libertação dos proletários e do lumpem-proletariat se esqueceu da exploração do trabalho. Além disso, não foi considerado que “a pirâmide social-produtiva, que tinha em sua base uma massa de trabalhadores em funções braçais e repetitivas e no seu topo os responsáveis pela concepção e direção da produção” (p.33) se inverteu e que, nesse processo de automação, criamos ainda mais desempregados e excluídos. Para corroborar seus argumentos, o autor nos traz a afirmação de Anthony Giddens de que a classe operária não existe como antes e que, portanto, a revolução do proletariado como projeto de sociedade mais ampla desmoronou (p.61).
Menezes é um dos defensores da interdisciplinaridade, reivindicando a realocação da Ciência na Cultura, e que se considere a Ciência como tal. Lançando mão de movimentos históricos, desvela toda uma dimensão totalmente diferente para o estudo e o conhecimento, principalmente na formação de conceitos. Trata-se de uma revelação de aspectos da nossa aventura historiada enquanto seres inconclusos e que, por isso mesmo, nos constituímos como socícolas que precisam ser educados (p.17). Todavia, que o processo educacional ocorra no sentido “de promover um encantamento com a aventura humana, para se vislumbrar uma ética dessa aventura” (p.17). Tal encantamento é “algo tão poético quanto político, depende das ciências humanas e naturais que, pelo contrário, se propõem a desencantar a compreensão mítica do mundo” (p.17). Pautando e demarcando o espaço da Física na Cultura, Menezes lamenta que “em uma sociedade em frenética transformação, faltam à escola as condições para promover tal cultura. A cultura humanística, literária, artística, técnica e científica a ser desenvolvida na escola seria essencial” (p.39) para esse propósito. Mas para uma visão de mundo a considerar o imponderável, ele nos diz que “para convocar tal atitude questionadora, não se deveria apresentar o conhecimento como “coisa dos outros”, ou seja, a ciência dos cientistas, a história dos historiadores, a geografia dos geógrafos, a literatura dos autores, a matemática dos matemáticos, a arte dos artistas” (p.41). Permita-se, ainda, um breve acréscimo: a literatura dos literatos; a poesia dos poetas. Convidando-nos a pensar a educação por meio de uma desconstrução da lógica da pirâmide de produção (p.33, 36, 61, 180, 203), e num diálogo com Karl Marx e Maynard Keynes (p.24), Menezes, então, propõe o educar para o imponderável.
Adverte para a mudança na natureza do trabalho que criou um sistema (escolar) onde se determinava os que seriam excluídos em cada nível e selecionava-se os que prosseguiriam para níveis mais avançados, adequando-se tal contexto à forma de produção de uma “pirâmide de competências”. A sociedade industrial produziu a escola com base numa lógica ultrapassada, mas ainda hoje as escolas continuam semelhantes “às da sociedade industrial, (...) persistindo em produzir (...) para selecionar e excluir” (p.38). São anacrônicas para uma sociedade profundamente transformada por mecanização, automação e informatização. Trata-se de um projeto obsoleto (p.38) de escola à deriva (p.42, 180 e 203).
Para o desafio de questionar o mundo, esboçando uma ética direcionada ao existir humano com uma educação para o imponderável, são percorridas três grandes etapas ao longo livro, sendo a primeira delas O Imponderável. A esse termo lapidar, é dedicado todo um capítulo, cuja profunda e densa abordagem faz uma reflexão conceitual sobre o termo “imponderável” relacionado a sinônimos como incerteza, imprevisível e casualidade. O domínio do termo “imponderável”, para expressar o presente-futuro da nossa espécie, está sedimentado em outra obra inquietante do mesmo autor: A matéria: uma aventura do espírito (2005). É admirável a forma com que ele traz um conceito de Física para o contexto social, econômico e político. Pelo senso comum, ao se ver que dentro de uma estação espacial os astronautas estão a flutuar, pensa-se que ali não haja ação da força gravitacional. Quem já teve oportunidade de visitar parques temáticos deve ter experimentado alguma situação de queda livre em algum daqueles brinquedos geradores de adrenalina. Pois é exatamente a mesma situação da estação espacial (a de queda livre) aquela que experimentamos ao sermos perpassados por imponderáveis. Nessa situação, não é possível perceber a força peso, ou melhor, perceber a atração gravitacional a que estamos tão acostumados aqui na Terra. Então, pelo mesmo senso comum, conforme foi dito, dizemos que estamos flutuando. O autor busca demonstrar, mantidas as proporções, que é esta a situação vivenciada por nós atualmente e que rumamos para um futuro duvidoso, carregados por uma espécie de aventura. Aliás, aventura é a melhor forma de dizer, nesses termos, o que estamos passando e o que o futuro nos reserva. Afinal, não é uma aventura sermos habitantes de um planeta que está em queda livre ao Sol?
Na contramão do tempo, em uma estratégia recursiva que nos conduz a perspectivas de certa simetria, espectral, revela-se um futuro incerto argumentado no capítulo seguinte, cujo título é inspirado em A Aventura, de Giorgio Agamben (p. 52), passando o que fora historiado “em um vertiginoso mergulho na aventura histórica e cósmica da vida humana (...) para que se aprenda a ‘viver com a incerteza’ desconfiando ‘das certezas’” (p.43). Menezes narra o percurso da aventura ao longo desse segundo capítulo e, nele, nos perguntamos: e não é uma aventura a migração do sapiens? Essa aventura é escrita de forma a nos envolver numa elegância matemática admirável, pela escala temporal em que se narra a aventura humana da atualidade até o surgimento da espécie e, ainda, o surgimento do universo. Não é surpresa, para quem é frequentador das obras de Luís Carlos de Menezes, saborear as sutilezas de como ele narra isso. Afinal, utilizando-se de ricas metáforas, ele é capaz de explicar o surgimento do sistema solar e a origem dos movimentos da Terra segurando verticalmente um sapato pelo cadarço e fazendo-o girar, de onde lança a pergunta: mas como a Terra é capaz de girar se ela não tem cadarço?
Para a análise a que se propõe em sua jornada histórica, o terceiro capítulo versa sobre a Ética da Aventura, buscando diálogo e dando voz a uma constelação de autores anunciados no início do livro (p.18), delineando todo um arco variado de orientações teóricas, a exemplo de Edgar Morin (p.184), Paulo Freire (p.174), Fernandez Enguita, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm, Hans Jonas (p.141) e Jacques Monod (p.22-23), dentre muitos outros.
Assumindo um caráter político na investigação da ética que busca cumprir o desafio de reflexões proposto ao longo do livro, arremata: afinal, não é uma aventura conviver com as manipulações de núcleos atômicos que já foram armas destruidoras de Hiroshima e Nagasaki? (p.149) e (p.173).
Ao situar o empreendimento humano para a cultura e na percepção sobre a biosfera, ao afirmar que “atmosfera, biosfera e litosfera são domínios interligados do meio em que humanos surgiram” (p.193), Menezes nos atualiza em termos da necessária consciência ambiental como a única certeza em meio a um futuro imponderável. Ressalva apenas a substituição de biosfera por hidrosfera, já que biosfera é a interligação dos domínios da atmosfera, da hidrosfera e da litosfera, que, apesar de poderem ser representadas de modo independente, apresentam, cada uma dessas esferas, a mesma importância que as demais, sendo que uma repercute sobre a outra. Os domínios, ou dimensões, que nutrem a existência do ser e de nossa espécie, ou o existir humano, dá-se pelas práticas produtiva, social e simbolizadora, que aqui implica uma equiparação entre essas três esferas. Conforme Menezes, elas se interpenetram, se interpõem, mutuamente coexistindo também perpassadas pelo imponderável.
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MENEZES, Luís Carlos de. Educar para o Imponderável: Uma Ética da Aventura. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2021. 232 p.
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