Experiência do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, CHAUÍ, Marilena. São Paulo: Martins Fontes, 2022
DOI:
https://doi.org/10.5585/42.2022.22442Keywords:
Merleaus-Ponty, filosofia, subjetividadeAbstract
Marilena Chauí é uma grande pensadora, professora da USP e, de fato, pode ser denominada filósofa. Não é simplesmente uma bacharel em filosofia. Por quê? Porque diferentemente daquela maioria que se declara filósofo, mas somente repete a fala dos outros, possui um caminho próprio de percurso filosofal. Criou conceitos originais e profundos. Entre tantas outras coisas que poderiam ser destacadas de Marilena Chauí, uma delas seria a leitura abrangente e profunda de Baruch Spinoza, Blanchot e outros filósofos de grande peso para o pensamento humano.
Na obra em questão a autora reúne alguns ensaios, diversos já publicados em outras épocas, mas revistos e ampliados, e outros bem recentes, do grande pensador que também faz parte de sua trajetória. Estamos falando do extraordinário Merleau-Ponty. Este grande filósofo foi um dos mais influentes na França, em especial, durante a década de 50. Conviveu, de perto e de longe, com Sartre, Camus e outros que repensaram uma Europa devastada, em todos os graus e sentidos, pela Segunda Guerra Mundial.
Muitos ensaios integram o livro em referência. O primeiro deles que merece, sob nossa perspectiva, um destaque especial é o denominado Experiência do Pensamento. Justamente, dá nome ao livro como um todo. Neste ensaio Marilena Chauí destaca, como não poderia deixar de ser, a imensa importância sobre as reflexões entre sujeito e pensamento do amplo legado conceitual de Merleau-Ponty. Em princípio, enfatiza o quanto ele contribuiu para responder um questionamento, fenomenológico, muito importante e que sempre vem à tona, especialmente, na área da filosofia. Declara a autora: "Aprendemos com Merleau-Ponty que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história, onde nascem, morrem ou se transformam se conseguimos responder a elas. Os filósofos não produziram sistemas nem doutrinas – aparecem para nós dessa forma quando nos distanciamos das inquietações que os faziam pensar. Como ignorar que o movimento que anima o trabalho da filosofia está sempre a desfazer o tecido da tradição, rompendo o fio de uma continuidade apaziguadora? A filosofia não inventa questões nem traz respostas. Interroga a experiência individual e coletiva, o sensível e o inteligível, o punctum caecum da consciência, aquilo que necessariamente ela não pode 'ver', sob pena de deixar de ser consciência (p.11)". Eis um dos pontos fulcrais deste livro. Ou seja, qual a medida daquilo que se nos apresenta, num primeiro momento, de fato, corresponda ao real? Corresponde à verdade? Merleau-Ponty sempre buscou algumas respostas atravessando, conforme se sabe, não somente Kant, mas diversos filósofos que ousaram fazer tais travessias. Muitas vezes insondáveis! Se pensarmos na complexidade e nos brilhantes postulados de Bergson a respeito do assunto.
Sabemos que em se tratando de percepção as inquietudes se triplicam. Por um lado, porque entramos na esfera da autonomia do sujeito e valor da experiência. Por outro, se levarmos em conta a atmosfera coletiva indomável – (ou quase?) – que, de certa forma, possui determinismos, acasos e fatos independentes de nossa vontade. Como conciliar e dar uma relativa unidade a uma posição? Durante a leitura de Experiência do Pensamento, impossível, nós leitores, ignorarmos as contribuições, por exemplo, de Vladimir Jankélévitch, que fez incursões singulares em se tratando de percepção. Isto é, existem momentos privilegiados cujo "real" se apresenta sem mediações? Qual seria a abrangência do inanalisável de Peirce (primeiridade)? Corresponderia às analogias eleitas pelos ícones em sua busca das purezas, digamos, silenciosas? Melhor dizendo: o grau mais puro de uma percepção? Quais os lugares em que se instalam os verdadeiros silêncios? Como tais, mostram as elipses que nos rasgam de ponta a ponta? Sacodem, furiosamente, o que estava completamente entorpecido em nós mesmos? E mais ainda: conseguimos captar, sem mediações, o adâmico?
Diante de tantas indagações, eis que Marilena Chauí nos oferece algumas pistas valiosas, nunca definitivas: "Merleau-Ponty busca o fundamental e critica o fundamento. Declara que toda expressão é perfeita e que não há expressão completa. Mostra que a sedimentação é o modo de ser de toda idealidade e que por isso mesmo é o que nos permite ir além, mas também é o que nos imobiliza. Que o corpo é um sensível exemplar, a carne é protótipo de uma maneira geral de ser, mas que não conduzem a uma antropologia filosófica na qual tudo é projeção do que não se encontra sob a máscara humana. (...) Recusa que o sujeito seja atitude e posição, afirma que os sujeitos percipiente, falante e pensante são práxis e indaga: que é a subjetividade? (p. 44) ". Conforme se sabe, houve à época de Merleau-Ponty uma grande problemática em relação a questões relacionadas à subjetividade. Facilmente dedutível se pensarmos, historicamente, no contexto pós-guerra na França. Ou seja, a construção urgente de novos valores depois do massacre de Hitler. A questão do sujeito e, consequentemente, da subjetividade estavam na ordem do dia. Mas de acordo com a autora, o pensador francês não se rendeu a certas posições da esquerda radical cujos princípios, de certa forma, subtraíam qualquer singularidade que pudesse advir de um eu predominantemente subjetivo. Nessa perspectiva, existe um processo chamado linguagem. O corpo do pensamento. Segundo a autora, Merleau-Ponty resgata a língua e consegue instituir uma forma nova. Desta maneira, não dá respostas definitivas e nem pretende. Mas consegue situar o estatuto da linguagem de uma forma, como dito, nova. Ele consegue um equilíbrio respeitável entre interioridade e exterioridade. Em outras palavras: objetividade e subjetividade.
Outro ensaio que nos chama a atenção e integra o livro intitula-se Obra de Arte e Filosofia. O objetivo da autora é claramente definido, ou seja, localizar Merleau-Ponty em relação às criações: "Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte no qual o Ser vem a ser: para que o Ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o Ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho da expressão; para que o Ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do filósofo. Se esses trabalhos são criadores, é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser (p. 152)."
O fragmento da autora diz muitas coisas. Impossível, nós leitores, não identificarmos a influência de Merleau-Ponty, nas gerações posteriores a ele, em especial, na área da filosofia. Deleuze, por exemplo, sempre foi firme ao localizar o papel da filosofia, das artes, da literatura e das ciências enquanto criadoras de conceitos (aliás, sem hierarquias). Mas, qual, efetivamente, a posição de Merleau-Ponty? Ele parte do pressuposto de que a experiência criadora indica uma falta. Ou seja, um vazio que deveria ser preenchido. O sujeito necessita preenchê-lo com a intenção clara de determinar no espaço da indeterminação, – (um dos mais belos espaços de liberdade acenando para a humanidade, mas, passando despercebido por aqueles que amam as algemas e as correntes escravizantes) –, e com isso artistas e escritores buscam dar expressão e concretude ao ainda nunca expresso. "O sentimento do querer-poder e da falta suscita a ação significadora que é assim, experiência ativa de determinação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para expor-por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo (p.153)".
Na verdade, os maiores pensadores do mundo, desde tempos imemoriais, jamais deixaram de pensar o real papel das artes em geral e, sobretudo, da literatura. Merleau-Ponty não poderia ficar indiferente. Para ele existe um Ser Bruto que seria a distância interna entre um visível-dizível e um outro seria o seu indizível. Inclusive, entre aquilo que é pensável-impensável. Enfim, existiria um sistema de equivalências no existir no mundo. Qual seria o papel do Ser Bruto? Uma grande abertura ao qualitativo. Diferenças qualitativas entre as coisas. Nesse contexto, tudo fica mais claro para nós leitores. O mundo, num primeiro momento, exibe certas equivalências não visíveis para nós. Tudo se apresenta como repetição e não diferença, (por lembrarmos uma vez mais de Deleuze). No entanto, somente o qualitativo poderá, de fato, materializar as diferenças. Como localizar o qualitativo? Como? Ora! As cores, sons, odores que, de alguma maneira, nos reenviam a uma espécie de substancialidade. Contudo, ao mesmo tempo impalpável do que poderia vir a ser. Neste momento entram em ação o escritor, o artista, o músico e os grandes pensadores. Tornam-se, para nós, os mensageiros e mediadores concretos do que antes deles não conseguiríamos acessar.
Por isso, entre tantos outros motivos que poderíamos colocar, a desestabilização quando nos deparamos com algo realmente novo, original e criativo. Algo estranho porque não reconhecemos. Emerge a diferença qualitativa. Não custa lembrar: toda diferença qualitativa é espantosa e surpreendente. Quando menos esperamos somos alçados e capturados por laços e tentáculos que embaralham o âmago de nosso ser. Despertamos de certas sonolências. Em outras palavras: acordamos de um certo torpor que embriaga a percepção comum, ordinária e repetitiva. Aquele que conforta e máscara o indizível e o invisível. A presença do novo, agora perceptível, nos traz mudanças e transformações paradoxais. Dantes jamais pensadas ou imaginadas.
Marilena Chauí prossegue: "O apelo à obra de arte como recomeço da interrogação filosófica é apelo àqueles que não manipulam e sim manejam as coisas e que, 'ruminando o mundo', jamais abandonam sua inerência a ele, mas, de dentro dele, o transfiguram para que seja verdadeiro sendo o que é quando encontra quem saiba vê-lo ou dizê-lo, isto é, quem consiga arrancá-la de si mesmo para que seu sentido venha à expressão. Em outras palavras, a invocação das obras de arte rompe com a tradição filosófica que as julgara cópias imaginativas da percepção, simulacros platônicos e, portanto, identificara ficção, erro e ilusão (p.158)". Veja-se que a autora faz uma interpretação sólida e fundamentada da filosofia e de seus objetivos incontornáveis. Traduz, para os leitores, o quanto seu repertório é rico, não somente por conhecer os clássicos da tradição da filosofia, mas, também, por elaborar ideias próprias e singulares a partir de uma leitura qualitativa do pensamento de Merleau-Ponty.
Recomendamos o livro em questão a todos que ainda possuem a rara capacidade da indignação e, sobretudo, da admiração (tão fugidia em tempos líquidos). Ao finalizarmos a leitura desta obra muitas indagações e inquietudes nos incomodam e nos fortalecem.
Entre elas poderíamos citar, por exemplo, em que medida somos tão facilmente enganados pela percepção comum? Onde estariam localizadas as linhas de fugas propostas por Deleuze? Como dar mais visibilidade ao que, num primeiro momento, se esconde sob a capa do esquecimento, das desmemórias, ambas, claramente intencionais sob as malhas, entrelaçadas e invisíveis, dos poderes estabelecidos?
Arriscamos algumas respostas. Isto é, se pensarmos que a humanidade estaria num patamar muito mais degradante caso Victor Hugo não tivesse povoado o nosso universo ao publicar Os Miseráveis. Ou: o que seria de nós sem As flores do mal de Baudelaire? Como pudemos sonhar com as loucuras do amor se não tivéssemos lido A Flauta e a Lua ou Domínios da Insônia de Marco Lucchesi? Como pensar na amplidão oceânica da musicalidade e da filosofia sem ter lido A Música e o Inefável de Vladimir Janquélévitch? Como pensaríamos, de maneira radical, sobre os signos que nos permeiam, muitas vezes, dissonantes sem ter lido As palavras e as coisas de Michel Foucault? Como pensar, conceitualmente, prosa e poesia sem ter lido o nosso gigante Octavio Paz? Como auscultar a linguagem das estrelas sem ter lido Estrela da Vida Inteira de Manuel Bandeira? O que entenderíamos da alma subterrânea dos rios e do sertão se não tivesse existido Guimarães Rosa? Diferença e Repetição, de Deleuze, soa, ecoa ou ressoa em nossas almas não localizáveis?
Na realidade, sem ter lido as diversas tipologias (ensaios, filosofia, poesia, romances, contos) daquelas que desestabilizam nossos anseios e devaneios, seríamos muito mais insuficientes, em nossas percepções e afecções, ao contemplar um simples rio. Ou a fúria indomável das ressacas oceânicas. Assim como, talvez, nunca tivéssemos dado a devida atenção para as cintilações dos pirilampos que, muitas vezes, sobrevoaram nossas cabeças. Ou, quem sabe, teríamos deixado de lado a eternidade do meio-dia cuja síntese dos espaços qualitativos propostos por instantes privilegiados nos conduzem para os grandes mistérios dos sonhos. (E não fossem os sonhos pouco teríamos a inventar, movimentar ou criar).
Devemos ficar atentos, durante a leitura do livro em questão, ao estilo inconfundível e singular de Marilena Chauí. Assim como na estruturação da obra, na forma como se coloca e repensa as contribuições incontestáveis de filósofos que possuem a felicidade de cair em suas mãos. A obra possui a dignidade de uma filósofa que prova, implicitamente, o quanto dedicou uma vida a ler, estudar, pesquisar, publicar, lecionar. E, sobretudo, jamais perdeu a rara capacidade de contradizer o que afronta e obscurece amores, valores e conceitos que ameaçam a contínua construção da liberdade humana.
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