Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões, de Alberto Manguel São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 184 p

Autores

DOI:

https://doi.org/10.5585/43.2023.22496

Resumo

Sempre é tempo de lembrar a importância da leitura e o papel das bibliotecas na difusão do conhecimento. Sobretudo relacionadas à área da Educação. Antes de mais nada, valelembrar também que publicações sobre a história dos livros e da leitura constituem parte fundamental da trajetória de Alberto Manguel. O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça (2017), Notas para uma definição do leitor Ideal (2020) e Uma história da leitura (1996) estão entre seus muitos títulos que ganharam tradução no Brasil.

Alberto Manguel é um romancista, tradutor, ensaísta e editor argentino que tem uma profunda paixão pelo mundo dos livros e da leitura. Aprendeu a ler por volta dos três anos e nunca mais parou. Filho de um embaixador argentino, passou a primeira infância em Israel, onde foi alfabetizado em inglês e alemão.Aprendeu castelhano, ao voltar para Buenos Aires, aos oito anos, e morou em diversos países, sempre rodeado por livros. Ainda na adolescência, a paixão pelos livros o levou a um encontro que marcaria a sua trajetória. Trabalhando como livreiro, acabou por estabelecer um afetuoso laço de amizade com ninguém mais, ninguém menos do que o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos frequentadores assíduos de uma prestigiada livraria anglo-germânica em Buenos Aires onde Manguel trabalhava. Durante quatro anos, Manguel frequentou a casa do escritor, para ler em voz alta os livros que a cegueira impedia Borges de visitar. Borges se dizia um grande leitor, acreditando que apenas “ocasionalmente” era escritor. Era um apaixonado pelas histórias, pelas frases, pela melodia dos versos e narrativas, enfim, pela palavra. Como grande leitor que era, o próprio Borges dizia que o paraíso deveria ter a forma de uma biblioteca. O livro Com Borges (2018), também lançado em português, é um longo ensaio com belas reflexões de Manguel sobre sua inesquecível convivência literária com Borges.

O apartamento de Borges, descrito por Manguel, era um lugar fora do tempo, povoado de livros e de palavras, um universo onde Manguel descobriu o tipo de conversa que lhe era intrínseca – a dos livros e da literatura. Os quatro anos de convivência com Borges deixaram profundas marcas na percepção e na produção literária de Manguel, que já escreveu diversos títulos sobre o mundo dos livros, do ser leitor, da leitura e das bibliotecas.

Apaixonado por livros, o escritor Alberto Manguel construiu, ao longo dos anos, uma enorme biblioteca privada, com aproximadamente 35 mil volumes, com destaque para exemplares raros de conotações pessoais, como, por exemplo, uma edição da década de 1930 dos Contos de Grimm, impresso em caracteres góticos, ou uma Bíblia produzida por um scriptorium alemão no século 13. Trata-se de um escritor erudito, com um vasto conhecimento de mundo, e um grande bibliófilo. Em Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões (2021), Manguel volta a um dos temas mais recorrentes em sua produção literária: o amor às letras.

Nos anos 2000, levou os cerca de 35 mil volumes de sua biblioteca pessoal para Mondion, uma aldeia de dez casas no centro-oeste da França. Nas ruínas de um antigo presbitério, construiu a sua biblioteca, com a ideia de que ali ambos ficariam, ele e os livros, até a morte. No entanto, não foi bem assim: em 2014, por uma série de circunstâncias, teve que encaixotá-los e guardá-los no depósito da sua editora no Canadá.

Parte daí a premissa deste mais novo livro de Manguel lançado no Brasil. No verão de 2015, Alberto Manguel e seu marido se prepararam para uma grande mudança de cenário: eles sairiam de sua casa medieval na França e passariam a morar em um apartamento em Nova York, espaço este que não comportaria todos os seus livros. Penosamente, sua biblioteca pessoal, com cerca de 35 mil volumes, teria que ser desmontada, encaixotada e deixada em um depósito. Durante esse processo, Manguel começa a relembrar dos títulos e das bibliotecas que contribuíram para sua formação intelectual, apresentando ao leitor essa miscelânea na forma de uma elegia e dez digressões que compõem o livro, todas em seu costumeiro e envolvente estilo ensaístico de escrita.

Elegia, em sua raiz grega (elegeía), refere-se a um poema de lamento melancólico, fúnebre. Seus temas, em geral, são o lamento decorrente de uma perda, de uma ausência. A digressão, por sua vez, é uma figura de linguagem em que o enunciador se afasta momentaneamente da linha temática principal de seu discurso para inserir reflexões paralelas, não necessariamente ligadas ao tema principal. A escolha de tais recursos estilísticos são o ponto alto da escrita envolvente adotada por Manguel, por meio da liberdade ensaística que tais recursos lhe proporcionam no texto, tornando-o ainda mais prazeroso à leitura. Suas idas e vindas memorialísticas por lembranças e imagens, quase sempre evocadas por intensas metáforas, conduz o leitor por labirintos literários, sobretudo aqueles leitores, como ele, apaixonados pela leitura e seus universos possíveis. Nesses universos surgem também figuras marcantes, além de diferentes períodos da história descritos por meio de sua erudição ligada à história da leitura que fez com que seu livro Uma história da leitura (1996) se tornasse um bestseller mundial.

Quem já passou pelo evento praticamente traumático de encaixotar muitos livros para uma mudança de residência sem dúvida se identificará com esta leitura de Manguel. Um livro breve,mas com grande profundidade de reflexão sobre o conceito de biblioteca, que nos fala apaixonadamente sobre a importância da leitura e dos livros em nossa vida e sobre como são vitais para o desenvolvimento da sociedade. Pode até não se tratar de um tema novo, mas sem dúvida é um tema a ser sempre relembrado. Sobretudo em contextos como o do Brasil onde tão pouco se valoriza a importância da leitura.

Depois de descrevera organização de sua biblioteca pessoal, ou, em suas próprias palavras, a “geografia” de sua biblioteca, o autor nos traz reflexões acerca de como seus livros fazem parte de quem ele é: “[...] embora soubesse que éramos apenas os guardiões do jardim e da casa, eu sentia que os livros propriamente ditos pertenciam a mim, eram parte de quem eu era”(p. 25). Sua coleção seria uma espécie de autobiografia em várias camadas e sua própria memória estaria menos interessada nele mesmo do que em seus livros.

Para qualquer leitor e colecionador, é quase impossível não ter vontade de acariciar seus livros, segurar alguns e reler páginas, redescobrir trechos, tudo que uma biblioteca pessoal pode proporcionar. A primeira parte de Encaixotando minha biblioteca carrega em suas páginas essa nostalgia e o encanto de Manguel pelos livros. A parte final fala sobre bibliotecas e sobre como os livros deram a ele, filho de diplomata, uma raiz e uma sensação de pertencimento que ele não conseguia ter com a vida nômade que era obrigado a levar enquanto crescia.

Ao longo das digressões que o livro traz, Manguel toca em pontos como: a criação literária; a memória; sua crença de que o sofrimento é a raiz da criação literária e a tentativa de identificação de onde começa essa crença. Escreve sobrea experiência da leitura e o poder da linguagem, entre outros temas ligados à literatura. Destacamos um breve excerto de suas reflexões sobre a importância das bibliotecas públicas como[...] um instrumento essencial contra a solidão, seu lugar como memória e experiência de uma sociedade. [...] sem as bibliotecas públicas e sem conscientização do papel que desempenham, a sociedade baseada na palavra escrita está fadada ao desaparecimento. (p. 13).

A prosa de Manguel revela o profundo embasamento conceitual característico de sua escrita, percebido tanto nas reflexões sobre as idiossincrasias de um bibliófilo quanto nas percepções das bibliotecas, ou de eventos como o incêndio que consumiu um dos mais significativos centros de conhecimento humano que foi a Biblioteca de Alexandria, no ano 48 a.C.

Em suma, segundo o escritor, em tom de manifesto a favor da leitura: “Ler sempre é um ato de poder. E é uma das razões pelas quais um leitor é temido em quase todas as sociedades” (Manguel, 2018). Essa fala nos leva para uma reflexão sobre a capacidade e a liberdade de ler e do poder que advém delas. A literatura dá a possibilidade de questionar.

Encaixotando minha biblioteca é uma leitura fluida, dessas que sentimos falta quando acaba. Um livro escrito por um bibliófilo para outros bibliófilos. Uma conversa com um amigo, que nos fala sobre uma das coisas de que mais gostamos: o livro. Quem guarda uma paixão enorme pela literatura e entende sua importância, vai encontrar neste livro argumentos ainda melhores para mostrar a outras pessoas como a escrita, os relatos, as memórias e o registro das informações são um espelho da nossa história. Os livros não apenas trazem boas narrativas, mas ajudam a construir uma sociedade mais igualitária.

Afinal, houve um final feliz. Se, em Encaixotando minha biblioteca, Manguel conta sobre o sofrimento que vivenciou ao ter que embalar e encaixotar os seus livros, sem saber se um dia voltaria a vê-los, seis anos depois, o sonho de reencontrá-los se concretizou. A “ressurreição da biblioteca”, como o próprio Manguel diz, ocorreu em 2021, ao receber um convite de Portugal para dar abrigo definitivo ao seu significativo acervo. Hoje, já contando com 40 mil títulos, sua biblioteca faz parte do novo Centro de Estudos sobre a História da Leitura, em Lisboa, e ocupa seiscentos metros quadrados do Palacete dos Marqueses de Pombal, edifício destinado a acolher o novo centro.

Longe de trazer conclusões no encerramento de suas digressões, Manguel elabora várias perguntas a si mesmo e aos leitores que o acompanharam até o final do livro. Questões mais uma vez profundas, filosóficas, sobre o conceito da biblioteca em suas necessidades de mudanças circunstanciais. Em suas palavras “o esvaziamento de uma biblioteca, embora doloroso, e o encaixotamento de livro, embora injusto, não precisam ser vistos como conclusão” (p. 171). Isso porque de tais mudanças necessárias podem surgir novas questões importantes de movimento para se pensar a própria condição da leitura e, nela, a própria vida que se questiona enquanto se mantém em movimento.

Quais seções de uma biblioteca desmontada sobrevivem e quais se tornam obsoletas? Quais alianças inesperadas acabam se formando nas caixas a abrigar novas organizações dos volumes destinados a novas organizações em novas prateleiras? E os novos rótulos? Quais serão eles tendo sido descartados os antigos? Será que ele próprio, leitor contumaz daqueles livros voltará a poder vê-los pelos corredores de uma biblioteca, vagando feliz entre eles encontrando e reconhecendo títulos aqui e acolá? Ou será que quem visitará a nova versão de sua biblioteca será somente seu fantasma? São algumas das questões que vagueiam a memória-imaginação de Manguel nas derradeiras páginas deste livro que se encerra com uma frase de Maria Stuart, rainha da Escócia, que Manguel pensa servir a ele próprio e à relação com sua vasta biblioteca: “em meu fim reside meu começo” (p.172).

Que a leitura convidativa desse livro de Manguel sirva de incentivo àqueles que ainda não tiveram o ânimo, ou a chance, de descobrir os encantamentos do universo libertador proporcionado pela leitura e pelo cultivo apaixonado de uma biblioteca pessoal.

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Biografias Autor

Hadassa Viviane Rodrigues, Universidade Nove de Julho - UNINOVE

Mestranda em Gestão e Práticas Educacionais - PROGEPE

 

Márcia Fusaro, Universidade Nove de Julho - UNINOVE

Doutora em Educação e Semiótica

Referências

MANGUEL, Alberto. Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

MANGUEL, Alberto. Ler é um ato de poder. Fronteira do Pensamento. Disponível em: https://www.fronteiras.com/assista/exibir/ler-e-um-ato-de-poder. Acesso em 27 de junho de 2022.

Publicado

2023-04-17

Como Citar

RODRIGUES, Hadassa Viviane; FUSARO, Márcia. Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões, de Alberto Manguel São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 184 p. Dialogia, [S. l.], n. 43, p. e22496, 2023. DOI: 10.5585/43.2023.22496. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/dialogia/article/view/22496. Acesso em: 17 ago. 2024.

Edição

Secção

Resenhas

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