CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. 431 p.
DOI:
https://doi.org/10.5585/51.2024.26177Palavras-chave:
relações étnico-raciais, educaçãoResumo
Sueli Carneiro é uma aguerrida ativista do movimento feminista negro brasileiro. Formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente é diretora do Geledés (Instituto da Mulher Negra), que ajudou a fundar em 1988. Em 2005, defendeu a tese de doutoramento que, agora, dezoito anos depois, é lançada sob a forma de livro.
A obra foi organizada em três partes: Poder, saber e subjetivação; Resistências; Educação e o cuidado de si. São partes que se articulam por meio de um tema central, o conceito, desenvolvido pela autora, de Dispositivo de Racialidade. No livro, Sueli Carneiro assume um discurso filosófico profundo, enquanto se coloca como militante do movimento negro. Nesse sentido, a autora aponta, na Introdução da obra, que irá falar a partir do lugar da escrava, do lugar dos excluídos, daqueles que, na condição de não cidadãos, estavam destituídos do direito à educação. Mas é na Apresentação do livro, intitulada O Ser e o Outro, que a autora indica o percurso teórico adotado, destacando que se trata de um estudo de cunho reflexivo e especulativo, visando assim demonstrar a potencialidade do conceito de dispositivo de Michel Foucault, aplicado às análises das questões raciais brasileira. Sueli Carneiro intenciona demonstrar que existe um Dispositivo de Racialidade operando na sociedade brasileira, demonstrando como esse conceito resulta na negação do outro ontológico, que surge no bojo da construção da pessoa branca, o que está sugerido no próprio subtítulo da obra.
Ainda na Apresentação, há uma retomada, por meio de uma breve explicação, dos conceitos de raça e racismo que orientam a obra, concordando com os estudos da década de 1970, que localizam o negro como categoria analítica e estão pautados nas diferenças socioeconômicas, mais significativas entre os brancos e os não brancos do que entre todos o não-brancos. Sueli Carneiro defende, assim, que o conceito de raça é parte fundamental da estruturação da sociedade brasileira e que os intelectuais da corrente do materialismo histórico-dialético não apreenderam as contradições forjadas em razão da racialidade. Essa perspectiva, segundo a autora, inviabilizou ou mascarou a realidade das relações raciais no Brasil, que estão profundamente vinculadas a relações de poderes, incidindo sobre o negro por meio variadas práticas e discursos.
Na Parte I do livro, a autora discorre sobre o conceito de dispositivo na perspectiva foucaultiana, enquanto faz deslocamentos conceituais para desenvolver o conceito dentro das análises da racialidade. Para tanto, a autora destaca a natureza do dispositivo que Foucault coloca como fundamental: o fato de ele ser sempre um dispositivo de poder, operando em múltiplas dimensões da vida social, como nos discursos, regulamentações, leis, enunciados de toda ordem e outras.
A proposta é de uma reflexão complementar à conceituação de Foucault sobre o dispositivo, que foi proposto na obra História da sexualidade, e que, segundo Sueli Carneiro, não traz uma imbricação entre sexualidade e racialidade. A autora interroga os resultados do alto investimento que a burguesia fez sobre o próprio corpo, como forma de autoafirmação e que culminou em um paradigma de um Eu ideal, que, sendo o corpo branco burguês, teria produzido uma representação do Outro como anormal. Dessa forma, dialeticamente falando, o branco produziu-se racialmente superior por meio da produção do inferior.
A autora afirma ainda que esse Dispositivo de Racialidade somente pode operar por meio de um Contrato Racial, teoria que ela empresta do filósofo afro-americano Charles Mills. Para Sueli Carneiro, essa teoria “estabelece as condições para um diálogo entre a perspectiva genealógica de Foucault e a construção da racialidade como dispositivo de poder”, pois, nos últimos quinhentos anos, os processos de conquista, associado ao Imperialismo, fez surgir uma relação de poder, saber e subjetividades informadas pela racialidade, que ordenou os sujeitos entre nativos, homens brancos e não brancos, criando todo um sistema político e econômico que teria torando o mundo moderno como ele é atualmente. No caso do racismo brasileiro, objeto de análise da autora, as reflexões do sociólogo Jessé de Souza servem de subsídio ao afirmar que o mito fundacional brasileiro foi o da democracia racial, que orientou a grande narrativa histórica do Brasil moderno.
Além de estabelecer uma relação entre as categorias de dispositivo e de racialidade, Sueli Carneiro menciona outro conceito de Foucault, que elevaria o Dispositivo de Racialidade a outros patamares: trata-se do conceito de Biopoder, que articularia gênero e raça com efeitos muito específicos, como a natalidade, longevidade e mortalidade, que, operadas no âmbito das massas, em estreita relação com a racialidade, introduz uma distinção entre quem deve viver e quem deve morrer. Em síntese o Biopoder, articulado com a racialidade, faz morrer o Outro, que, não sendo o ideal biológico de humano, leia-se brancos, é degenerado e inferior.
Há ainda um recorte de gênero no livro, revelando como o dispositivo e o Biopoder atuam sobre os corpos das mulheres negras. Sueli Carneiro traz informações relacionadas às mortes evitáveis e preveníveis, mortes no parto e outros descasos do sistema de saúde em relação às mulheres negras. Essa lógica perversa, segundo a autora, faz com que mulheres negras recebam menores e piores cuidados médicos no Brasil. Quanto aos homens negros, o livro aborda a questão da violência, refletindo que, enquanto para as mulheres o Dispositivo de Racialidade atua mais na chave do deixar morrer, no caso dos homens negros a tática adotada é de extermínio e encarceramento em massa, tudo juridicamente amparado, impossibilitando qualquer cooperação interétnica, pois foram forjados mecanismos com o propósito de eliminar toda negritude da sociedade – mata-se o corpo e, quando possível, mata-se a moral, transformando suspeitos em bandidos, usuários em traficantes e, até pouco tempo, desempregados em vadios.
O livro também propõe uma reflexão no sentido de articular o Dispositivo de Racialidade a um de seus mecanismos de funcionamento, o epistemicídio. O termo foi desenvolvido por Boaventura de Souza Santos para explicar os processos de dominação e exploração, por meio da destituição da racionalidade, da cultura e civilização do Outro.
Para fechar a primeira parte do livro, Sueli Carneiro reflete sobre as interdições que o negro sofre na sociedade. Segundo a autora são de muitas dimensões as práticas do dispositivo de racialidade: intelectual, moral, como sujeito de direitos, político, as quais contribuiriam para a construção de um imaginário social que naturaliza a ideia de inferioridade do negro.
Na parte II do livro, a autora lembra que toda opressão exercida por um dispositivo produz, ao mesmo tempo, seu polo de resistência, indicando que sempre existirá resistência e que foi esta a causa da sobrevivência dos negros na sociedade brasileira. Mesmo com a conformação do Dispositivo de Racialidade após a Abolição, em razão do projeto de país que a República buscava, o primeiro ato de resistência do negro brasileiro foi manter-se vivo. Citando Foucault, a autora diz que todo dispositivo se vale de estruturas anteriormente estabelecidas, ou seja, o Dispositivo de Racialidade não criou nenhuma estrutura para seu funcionamento, mas ressignificou as relações do período escravista e as articulou com o projeto de modernização do país, que pretendia extirpar o negro da sociedade, seja por meio da miscigenação ou do extermínio sistemático. É nesse contexto que manter-se vivo pode ser entendido como ato de resistência, já que existir fisicamente confrontaria as expectativas de branqueamento da população.
Sueli Carneiro destaca, nesta parte do livro, que não tem a intenção de elencar as muitas estratégias de sobrevivência que os negros desenvolveram, mas de dar voz e visibilidade a sujeitos que carregam em si memórias ancestrais, tomada de consciência e enfrentamentos ao racismo e à discriminação. Deste modo, ela pretende alçar os subalternizados à condição de protagonistas de suas próprias histórias e experiências, uma inversão do negro como objeto para o negro como sujeito de suas epistemologias.
Assim, por meio da entrevista com quatro personalidades negras, duas com pele mais retinta e duas com pele mais clara, a autora procura demonstrar como o Dispositivo de Racialidade opera para permitir uma certa mobilidade social subordinada e restritiva, enquanto, simultaneamente, opera em oposição à mobilidade coletiva. As entrevistas trazem relatos de sobrevivência e experiências singulares, mas que se inscrevem no campo da coletividade das pessoas negras do Brasil, por serem comuns a qualquer negro ou negra, conscientemente ou não. Neste ponto, há que se destacar a entrevista com o já falecido poeta Arnaldo Xavier, que, segundo a autora, foi seu maior interlocutor durante a elaboração da tese e que faleceu antes de vê-la concluída, mas que, pelo exemplo de exercício de liberdade e de recusa da subjetivação reservada aos negros brasileiros, contribuiu imensamente para a realização da tese.
A educação e o cuidado de si nomeiam a terceira última parte do livro, e é nesta etapa do percurso que a autora introduz o conceito de epistemicídio como parte do Dispositivo de Racialidade, uma vez que, para colocar o Outro em condição de subalternidade, uma estratégia é classificá-lo como incapaz de produzir conhecimentos, claro que nos termos da branquitude.
Ainda há a abordagem do epistemicídio no campo educacional, destacando esse mecanismo como uma forma de perpetuação cultural e racial advindo do projeto colonial até o presente. Neste ponto, Sueli Carneiro reflete sobre as entrevistas da parte anterior e com o Dispositivo de Racialidade estabelece os marcos dessas reflexões. Uma das reflexões diz que, na perspectiva de Foucault, a escola não deveria excluir, pois, como aparelho de normalização, ela deveria fixar os sujeitos. Entretanto, os dados estatísticos demonstram que os negros compõem a massa de excluídos do sistema educativo. A tese defendida é a de que existe uma negação à fixação do sujeito negro no ambiente escolar em razão do funcionamento do dispositivo – a escola e, portanto, o acesso à educação, para os negros, têm especificidades operadas pelo Dispositivo de Racialidade que coloca em dúvida permanente sua educabilidade.
Sueli Carneiro explora as entrevistas e destaca delas aspectos que indicam formas criativas, encontradas pelos entrevistados, para estabelecer uma autoafirmação e se reapropriar da educação que é sistematicamente negada. Essa análise destaca, nos discursos das experiências, uma possibilidade de futuro, relacionada à própria aquisição de escolarização, emanando, por exemplo, como estruturadora do projeto familiar dos negros – é por meio da educação que se pode vislumbrar uma possibilidade de futuro.
Por fim, Sueli Carneiro empresta de Foucault o conceito de Cuidado de Si e o extrapola, para apontar possibilidades de resistência em uma sociedade que se quer branca. Ao destacar o Cuidado de Si como possibilidade de uma ética renovada insurgente aos modos de subjetivação do negro, ela indica caminhos para a construção de “sujeitos coletivos libertos dos processos de subjugação e subalternização”.
Trata-se de um livro para pensar, por meio de uma sofisticada filosofia, os processos de subjetivação, a cidadania, a ética e a educação, como modo de provocar um movimento de real libertação e de restituição da humanidade dos negros no Brasil.
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CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
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